domingo, 30 de março de 2014

1964 + 50: tortura, males de origem

Livro proibido: "Torturas e torturados"

A prática da tortura no Brasil é tão antiga quanto a colonização. A tortura, que já era praticada largamente desde a idade média na Europa, cruzou o Atlântico e, junto com a pólvora, forçou a subjugação daquela gente com quem os colonizadores dedicavam sua indiferença e dominação. Foi assim com os povos indígenas e mais tarde com os povos negros sequestrados, vendidos como coisa e escravizados das várias partes da África. A tortura é obra da "civilização". No "novo mundo", a tortura serviu à barbárie.

É disso que trata a corajosa denúncia de Márcio Moreira Alves, em plena ditadura, reunida no livro "Torturas e torturados" (Idade Nova, 1967). Antes de ser publicado, o livro passaria por um verdadeira via crucis jurídica até sua liberação. 

A primeira edição de "Torturas e Torturados" foi apreendida à véspera de seu lançamento por ordem Ministério da Justiça. Antes, o SNI (Serviço Nacional de Inteligência) fotografara seus originais protegidos em Paris, página por página, e apresentara o registro como um dos motivos alegados para proibir a candidatura de Márcio Moreira Alves a deputado federal pelo MDB (Movimento Democrático Brasileiro), do Rio de Janeiro, partido de oposição a ditadura representada pelo ARENA (Aliança Renovadora Nacional).

Ambas as tentativas de cercear a liberdade de pensamento do autor e de impedir que os impressionantes depoimentos que recolheu de presos políticos torturados fossem publicados falharam. Em novembro de 1966 o Superior Tribunal Eleitoral decidiu, por unanimidade, que as denúncias sobre torturas nada tinham de "subversivas", podendo o autor concorrer às eleições. Em junho de 1967, o Tribunal Federal de Recursos, ainda por unanimidade, considerou ilegal o ato do Ministério da Justiça que havia determinado a apreensão do livro. Em despacho publicado em 6 de julho, o TRF esclareceu que a circulação do livro é livre em todo o território nacional.

Mas essa tolerância durou pouco. Eleito, o deputado Márcio Moreira Alves fez oposição ao regime militar. Em 1968, em protesto contra a repressão aos movimentos contrários a ditadura, Marcio Moreira Alves pronunciou veemente discurso na Câmara, conclamando o povo a realizar um “boicote ao militarismo”, não participando dos festejos comemorativos da Independência do Brasil no 7 de setembro próximo. Em resposta, o presidente Costa e Silva antecipou o fechamento do regime e editou o AI-5, o mais drástico de todos os atos institucionais desde o golpe civil-militar de 1964, que determinou o fechamento do Congresso Nacional e de outros órgãos legislativos,  intervir nos estados e municípios sem as limitações previstas na Constituição, cassar mandatos eletivos e suspender, por dez anos, os direitos políticos de qualquer cidadão, decretar o confisco de bens e suspender a garantia do habeas-corpus.

"Torturas e torturados", está agora disponível para baixar gratuitamente aqui. O livro é um documento contra a prática da tortura, esse mal incrustado no Estado, praticado sistematicamente por agentes públicos em sistemas de privação de liberdade e que deforma a todos nós. 



    No Brasil como no mundo, há anos — poderia dizer
    que desde sempre — todo cidadão primariamente informado
    sabe que a polícia usa métodos violentos para intimidar
    ou interrogar ladrões e assassinos. Mas, por comodismo e
    pelo individualismo desumanizador característico de nossa
    época, esses métodos jamais foram combatidos eficientemente.
    São considerados parte de nossa vida social, uma
    parte excusa é verdade, mas irremovível, como a pederastia
    ou a prostituição. A insensibilidade que criamos passou a
    considerar a brutalidade policial como uma parte suja, mas
    indispensável, do sistema de garantias coletivas. Só quando
    ultrapassa certos limites da racionalidade é que algumas vozes
    se levantam para condená-la. É o caso, por exemplo, das
    periódicas campanhas de metralhamento de assassinos nas
    favelas cariocas que, com igual periodicidade, provocam artigos
    de protesto na imprensa até que, fuzilados os bandidos
    mais notórios, tanto o tiroteio como o protesto adormecem.

    O emprego de torturas, minuciosamente executadas no
    Brasil após o golpe militar de 1.° de abril de 1964, parece
    ter causado incredulidade em quase todo mundo e surpresa
    entre os bem pensantes. Por que esta surpresa? A violência
    acaso não existia antes, tolerada e protegida?

    Creio que a única explicação válida é que o traumatismo que as torturas
    de abril causaram na sociedade brasileira não foi moral, pois
    suas raízes estão no instinto de auto-defesa dos surpreendidos.
    Do momento em que as torturas passaram a ser usadas
    em larga escala contra presos políticos, portanto para reprimir
    crimes de opinião, todos se sentiram ameaçados. Agora,
    são os comunistas e esquerdistas as vítimas. Amanhã, poderão
    ser os fascistas e direitistas. O método deixou de ser de
    defesa coletiva para transformar-se em ameaça generalizada.
    Daí ter sido condenado até por alguns dos responsáveis por
    sua disseminação, membros do governo Castelo Branco.

    (...)

    A moderação com que as Forças Armadas atuaram
    na vida nacional até 1964 serviu para envolvê-las em uma
    auréola de prestígio popular. No Brasil, o militar não era
    olhado como o prepotente, o tirano em potencial da maioria
    dos países latino-americanos. Era antes visto como um cidadão
    respeitável, presumivelmente íntegro, saído da pequena
    classe média, que se dedicava a afazeres mais ou menos
    úteis, mas sempre norteados por idéias gerais de patriotismo
    e honestidade. Ao descobrir que alguns destes cidadãos
    exemplares, vizinhos tranqüilos se entregavam ao flagelamento
    de presos políticos e tinham sua abjeção acobertada
    e fortalecida por seus chefes e, conseqüentemente, por seus
    companheiros de profissão, a consciência brasileira levou
    uma bofetada.

    O mal que as torturas causaram à futura convivência de
    brasileiros armados e desarmados é grande e sua extensão
    só o futuro e a afirmação ou não do militarismo político poderá
    determinar.  (...) Enfrentamos hoje o perigo de criar-se um
    grupo militar privilegiado que mantenha o regime de força,
    em aliança com os privilegiados civis, portanto direitistas,
    com a finalidade única de conservar os privilégios que lhes
    foram dados e recebendo, todos, apoio norte-americano pois
    continuariam a reprimir indefinidamente as esquerdas, a famosa

    ameaça comunista, que os interesses imperiais no Brasil procuram 
    confundir com o nacionalismo e a socialização.

    A pergunta que normalmente se faz quando surgem revelações
    de torturas, pergunta que Jean Paul Sartre repete
    no prefácio que escreveu para o depoimento de Henri Alleg
    “La Question”, é — como é possível que isto ocorra entre
    nós?

    A resposta é simples: é possível acontecendo, como
    sempre aconteceu. Se a polícia rotineiramente tortura criminosos
    comuns, por que não torturaria os presos políticos? Se
    os militares, pela primeira vez colocando em prática o que
    leram dos métodos dos “Green Berets” norte-americanos ou
    dos “parás” francêses, não foram punidos por seus superiores,
    porque não prosseguiriam no emprego destes métodos?

    Tudo é singelo, tudo é mecânico, até mesmo o esquecimento
    em que as denúncias caem após nosso primeiro e ineficiente
    impulso de indignação.

    É preciso, para que purifiquemos a mancha que a tortura
    joga sobre todos os brasileiros, não apenas que se punam
    os oficiais e policiais responsáveis pelo seviciamento
    de homens e mulheres entregues à sua guarda, como que se
    acabe de vez com o sistema de brutalidade montado nas prisões
    brasileiras e, sobretudo, que se guarde a lembrança dos
    crimes cometidos para que sua repetição amanhã se torne
    impossível.

    (...)





A atualidade daquelas denúncias de tortura ainda nos primeiros anos de chumbo está registrada na introdução da edição impressa: "É um processo de nosso tempo e uma denúncia da civilização em que vivemos". O mais grave é que a prática da tortura tenha também se acomodado na democracia vigente no país. Combatê-la exige rara coragem.

Leia também:


Tiro ao Álvaro: "A falta de gosto impede a 
liberação da letra", determinou a censora


Em 1973, o compositor e cantor Adoniran Barbosa teve letras vetadas pela censura, mesmo as já gravadas na década de 50. Caso de “Tiro ao Álvaro", vetada pela censora Eugênia Costa Rodrigues, junto com “Samba do Arnesto”, “Já fui uma brasa” e “O Casamento do Moacir”. Em “Tiro ao Álvaro” (com Oswaldo Moles), a censora faz um círculo nas palavras “tauba”, “revorve” e “artormove”, determinando que a “falta de gosto impede a liberação da letra”. Para que pudesse ser aprovada e gravada novamente “Tiro ao Álvaro”, teria que virar “Tiro ao Alvo” e as palavras "corrigidas". Adoniran não aceitou e deixou para gravá-las mais tarde. Ele acreditava que a burrice da ditadura iria passar. Adoniran deixou saudades e sempre será lembrado pela irreverência da sua obra. Ao contrário da ditadura. Leia mais Documentos Revelados aqui: www.documentosrevelados.com.br

Vejaí: edições localizam o papel da Veja na ditadura

Garimpando num sebo em SP, eis que deparo-me com a história recente do Brasil. Duas edições da revista Veja. A primeira de dezembro de 1969, noticiava na capa "A herança de Costa e Silva", o segundo militar a comandar o país durante a ditadura e responsável pelo endurecimento do regime com o AI (Ato Institucional) nº 5, ou o "golpe no golpe". Costa e Silva havia morrido dias antes. A outra, de abril de 1974, trazia na capa "O décimo aniversário da revolução" golpista que manteve tudo na mesma ordem. A primeira sob o AI-5 e a segunda sob censura, a matéria de capa das duas edições localizam o papel da Veja na ditadura.

segunda-feira, 24 de março de 2014

1964 + 50: quem tem medo da verdade?




Quem tem medo da verdade?


Lá vêm uszomi de bem

As mãos nos bolsos escondem o sangue de alguém

Os passos curtos e as pernas bambas

Denunciam maldades que ainda pesam em seus ombros

Uszomi carregam manchas em seus nomes

No peito cansado, já não aguentam mais velhas medalhas

Eles sabem o que fizeram no longo outono do século passado

Golpearam violentamente a verdade e a justiça

Tomaram de assalto o poder que era do povo

E se tornaram o poder absoluto!

Como foram ousados, serei da minha parte, ousado também

Tenho o dever de falar porque não sou cúmplice

Calado, minhas noites seriam assombradas pelas memórias

Da gente que projetava na vida, sombras de esperança

Quando uszomi vieram, eles chegaram abençoados

E agiram em defesa do sono dos justos

Estes tiveram a oportunidade de fazer justiça

Mas se calaram voluntariamente

Juntos, caçaram vidas, sombras e esperanças

Exigiram disciplina, quando na verdade queriam obediência

Censuraram o poeta, o poema e a poesia

Trocaram a notícia da primeira capa

Pela receita indigesta e macabra

Deram um banho de água fria no sonho de justiça

Descarregaram choques naqueles com quem se chocaram

Provocaram pesadelos

Prenderam a liberdade

Torturaram a alma

Logo ali, na sala, na cela, na vala, na viela, na mata

Desapareceram com o corpo e com a sombra

Deixaram um abraço partido e um adeus... que nunca foi dito

Na caminhada interrompida, o preço... a vida!

Onde esta? Onde está?

Ainda gritam mães, filhos e avós

Ninguém apareceu pra explicar

Quando uszomi caíram pensaram que seriam esquecidos

Acharam que ficaria o dito pelo não dito

Se esconderam da verdade porque sabiam

Que verdade significa justiça

Foi quando a poesia se fez necessária

E o poeta voltou a recitar seu poema em voz alta

Com a certeza de que a verdade está a caminho e ninguém, ninguém, a deterá.


Ruivo Lopes | Poema publicado primeiro em Coletivo Cultural Poesia na Brasa, Antologia Volume IV (2012), e só agora disponível na íntegra neste blog Poéticas Políticas, em memória daquela gente que ousou quebrar a imposição do silêncio e não se conformou com o inconformável. Este poeta recita seu poema em voz alta pela memória, verdade e justiça para todas as vítimas da violência do Estado que ainda persiste neste país de acentuados contrastes raciais, étnicos e sociais.

sábado, 15 de março de 2014

Uma Pá/lavra no Dia da Poesia



Pá/lavra

Escrevo minha própria palavra
Rasuro velhos tratados que mantém tudo na mesma ordem

Para não morrer, a palavra precisar escrever o novo
E só escreve o novo quem subverte a ordem

Minha palavra quer ser falada,
                                                  sussurrada,
                                    cantada,
                                                  rimada,
                                     gritada
Não importa a forma,
                                   não importa a língua

A pá/lavra quer se libertar,
                               ela quer libertar,
        ela quer ferir,
                               ela quer unir,
            ela quer conspirar,
                               ela quer transformar,
         ela quer ser ou/vida,
                               ela quer ser vista

ela quer ser um vírus
                                  e propagar-se... infinitamente

ela quer abrir caminhos
                                      e narrar caminhadas

ela quer ser lançada ao vento
                                               em constante movimento
ela quer ser minha,
                   ela quer ser sua,
                                              ela quer ser nossa!

Ruivo Lopes | Ofereço a você um antigo poema meu recuperado especialmente para este Dia da Poesia (14). Sirva-se!

quarta-feira, 5 de março de 2014

Perifeminas II - Sem Fronteiras: livro reúne 52 mulheres brasileiras e estrangeiras e registra histórias, poesias, contos, desabafos e relatos de mulheres da cultura hip-hop



Com a participação de 13 mulheres que vivem em outros países e 39 brasileiras, a Frente Nacional de Mulheres no Hip-Hop (FNMH²) lança, na próxima sexta-feira, dia 7, às 19h, na Ação Educativa (R. General Jardim, 660, Vila Buarque, região central de SP), o livro Perifeminas II – Sem Fronteiras (Literarua, 104 págs.), que traz um compilado de histórias, poesias, contos, desabafos e relatos de mulheres que fazem parte da cultura hip-hop. Durante o lançamento, parte das autoras estará presente para assinar a obra e comentar os textos.

Com uma apresentação sobre a participação das mulheres na literatura marginal e periférica no Brasil, o livro é a continuidade de um projeto que surgiu em 2012 e já publicou 62 escritoras no primeiro volume da antologia, chamado Perifeminas – Nossa História, divulgado aqui.

Entre os textos selecionados para compor a nova obra, MCs, B.girls, graffiteiras, Djéias – feminino de Djs -, poetizas, militantes e também escritoras imprimem nas páginas do livro a própria história de anos de vivência e luta pelo movimento hip-hop, em situações que incluem ativismo social, feminismo e valorização dos elementos da cultura.

A jornalista Jessica Balbino apresenta no livro uma pesquisa histórica elaborada sobre a participação da mulher na literatura marginal e periférica do Brasil. A  ilustradora Caju assina a arte da capa. A diagramação ficou por conta da graffiteira Riska, que também assinou o trabalho no primeiro volume. O editorial foi assinado por Lunna Rabetti, que é a criadora da frente. Priscila Vierros e Vanessa Soares fizeram a revisão do livro. Já a tradução das estrangeiras ficou por conta da b.girl Miwa. O projeto foi viabilizado pelo VAI (Valorização de Iniciativas Culturais), por meio da proponente e integrante do grupo Odisseia das Flores, Jô Maloupas. Todas da Frente Nacional de Mulheres no Hip Hop.

Sobre a FNMH²

A Frente Nacional de Mulheres no Hip-Hop, coletivo de mulheres ativas da cultura Hip Hop, está presente em mais de 15 Estados no Brasil, que vem desde março de 2010, realizando e ampliando seu leque de ações em prol da liberdade feminina, destacando a importância da participação das mulheres na sociedade através de atividades temáticas, formação cultural, social, política e de cidadania.

Vale destacar, que são realizadas atividades pontuais conforme Agenda que envolve ações como: debates, fóruns, oficinas, shows, capacitação e formação, suporte técnico, elaboração de projetos sociais e culturais.

A FNMH2, tem intercâmbio internacional com os países da América Latina, África e Europa.

Põe na agenda e participe!

Lançamento Perifeminas II – Sem Fronteiras

Quando: sexta-feira, 7, às 19h
Onde: Ação Educativa
Endereço: Rua General Jardim, 660, Vila Buarque
(próximo ao metrô: Santa Cecília ou República)
Gratuito & Classificação: livre

domingo, 2 de março de 2014

Folia literária: carnaval e samba passados a limpo



Nestes dias de folia, pra manter o clima do ziriguidum, as dicas de leitura são os livros que tem o carnaval e o samba como temas. Vem comigo!
O primeiro é Carnaval em Branco e Negro: carnaval popular paulistano, 1914-1988, de Olga Rodrigues de Moraes von Simson (editoras Unicamp, Edusp e Imprensa Oficial, 2007), que apresenta um panorama do carnaval de rua, negro e operário da São Paulo do século passado. Na mesma linha tem o A geografia do samba na cidade de São Paulo, de Alessandro Dozena (Polisaber, 2012), minuciosa pesquisa que situa o samba paulistano na complexa urbanização da cidade. No campo da ficção e do romance, outros dois livros completam a quadra: Desde que o samba é samba, de Paulo Lins (Planeta, 2012), um delicioso registro da memória do samba e do cotidiano de personagens dos morros e becos cariocas em ebulição na década de 1920. E, finalmente, Ainda cometo um samba, primeiro romance de Walner Danziger (Edições Incendiárias, 2013), que narra o compasso e o descompasso de personagens de corações atiçados e aflitos nos dias que antecedem o carnaval. 
Boa leitura e até quarta-feira de cinzas!