O escritor Gabriel García Márquez (1928-2014) deixará muita
saudade. Saudade, essa palavra tão pretuguesa, sentida no fundo do peito pelos
povos indígenas, estalada na boca e salivada de sal dos mares e dos doces das
matas dessa imensa América Latina. América Latina, Latíno-america, seus povos,
suas paixões. Sua imensa terra retalhada e regada a sangue servido nos cálices
dos donos do poder. A febre da solidão é a saudade. Solidão imortalizada pelo
escritor que nasceu na aldeia de Aracataca, na Colômbia, e morreu na última
quinta, 17, no México. Dizem que Márquez sofria de perda de memória... de tantas
que tinha. Se vivesse mais cem anos, faltariam dias e noites para que todo dia fossem-lhe lembrá-lo de uma.
Ao receber o Prêmio Nobel de Literatura, em 1982, Márquez fez o que
um sujeito habilidoso das letras, da imaginação e da consciência comprometidas com sua
imensa América Latina, faria. Deu prova da existência humana, oferecendo um imenso
poema!
Não é um discurso!
A Solidão da América Latina
Por Gabriel García Marquez:
Antônio Pigafetta, um navegante florentino que acompanhou
Magalhães na primeira viagem ao redor do mundo, ao passar pela nossa América
meridional escreveu uma crônica rigorosa, que, no entanto, parece uma aventura
da imaginação. Contou que havia visto porcos com o umbigo no lombo, e uns
pássaros sem patas cujas fêmeas usavam as costas dos machos para chocar, e
outros como alcatrazes sem língua cujos bicos pareciam uma colher. Contou que
havia visto um engendro animal com cabeça e orelhas de mula, corpo de camelo,
patas de cervo, relincho de cavalo. Que puseram um espelho na frente do
primeiro nativo que encontraram naPatagônia, e que aquele gigante ensandecido,
perdeu o uso da razão pelo pavor de sua própria imagem.
Este livro breve e
fascinante, no qual já se vislumbram os germes de nossos romances de hoje, que
está longe de ser o testemunho mais assombroso da nossa realidade daqueles
tempos. Os cronistas das índias nos legaram outros, incontáveis. O El Dourado,
nosso país ilusório tão cobiçado, apareceu em inúmeros mapas durante longos
anos, mudando de lugar e de forma de acordo com a fantasia dos cartógrafos. Na
procura da fonte da Eterna Juventude, o mítico Alvar Núñez Cabeza de Vaca
explorou durante oito anos o norte do México, numa expedição lunática cujos
membros se comeram uns aos outros, e dos 600 que começaram só restaram cinco.
Um dos tantos mistérios que nunca foram decifrados é o das onze mil mulas
carregadas com cem libras de ouro cada uma, que um dia saíram de Cuzco para
pagar o resgate de Atahualpa e nunca chegaram ao seu destino. Mais tarde,
durante a colônia, em Cartagena das Índias eram vendidas umas galinhas criadas
em terras de aluvião, em cujas moelas apareciam pedrinhas de ouro. Este delírio
ao áureo de nossos fundadores nos perseguiu até há pouco tempo. No século
passado, a missão alemã encarregada de estudar a construção de uma estrada de
ferro interoceânica no istmo do Panamá concluiu que o projeto era viável, desde
que os trilhos não fossem feitos de ferro, que era um metal escasso na região,
e sim de ouro.
A independência do
domínio espanhol não nos pôs a salvo da demência. O general Antonio López de
Santana, que foi três vezes ditador do México, mandou enterrar com funerais
magníficos a perna direita que perdeu na chamada Guerra dos Bolos. O
generalGarcía Moreno governou o Equador durante dezesseis anos como um monarca
absoluto, e seu cadáver foi velado com seu uniforme de gala e sua couraça de
condecorações sentado na poltrona presidencial. O general Maximiliano Hernández
Martínez, o déspota teósofode El Salvador que fez exterminar numa matança
bárbara 30 mil camponeses, tinha inventado um pêndulo para averiguar se os
alimentos estavam envenenados, e mandou cobrir de papel vermelho a iluminação
pública para combater uma epidemia de escarlatina. O momumento do general
Francisco Morazán, erguido na praça principal de Tegucigalpa, na realidade é
uma estátua do marechal Ney, comprada em Paris num depósito de esculturas
usadas.
Há onze anos, um dos
poetas insignes do nosso tempo, o chileno Pablo Neruda, iluminou este espaço
com a sua palavra. Nas boas consciências da Europa, e às vezes também nas más,
irromperam desde então com mais ímpeto que nunca, as notícias fantasmagóricasda
América Latina, essa pátria imensa de homens alucinados e mulheres históricas,
cuja tenacidade sem fim se confunde com a lenda. Não tivemos, desde então, um
só instante de sossego. Um presidente prometeico, entrincheirado em seu palácio
em chamas, morreu lutando sozinho contra um exército inteiro, e dois desastres
aéreos suspeitos e nunca esclarecidos ceifaram a vida de outro de coração
generoso, e de um militar democrata que havia restaurado a dignidade de seu
povo. Neste lapso houve cinco guerras e dezessetegolpes de Estado, e surgiu um
ditador luciferino que em nome de Deus leva adiante o primeiro e etnocídio da
América Latina em nosso tempo. Enquanto isso, 20 milhões de crianças
latino-americanas morreram antes de fazer dois anos, mais do que todas as
crianças que nasceram na Europa Ocidental desde 1970. Os desaparecidos pela
repressão somam quase 120 mil: é como se hoje ninguém soubesse onde estão os
habitantes da cidade de Upsala. Numerosas mulheres presas grávidas deram à luz
em cárceres argentinos mas ainda se ignora o paradeiro de seus filhos, que foram
dados em adoção clandestina ou internados em orfanatos pelas autoridades
militares. Por não querer que as coisas continuem assim, morreram cerca de
duzentas mil mulheres e homens em todo o continente, e mais de cem mil
pereceram em três pequenos e voluntários países da América Central - Nicaragua,
El Salvador e Guatemala. Se fosse nos Estados Unidos, a cifra proporcional
seria de um milhão e 600 mil mortes violentas em quatro anos.
Do Chile, país de
tradições hospitaleiras, fugiram um milhão de pessoas: dez por cento de sua
população. O Uruguai, uma nação minúscula de dois milhões e meio de habitantes
e que era considerado o país mais civilizado do continente, perdeu no desterro
de um cada cinco cidadãos. A guerra civil em El Salvador produziu desde 1979,
quase um refugiado a cada 20 minutos. O país que poderia ser feito com todos os
exilados e emigrados forçados da América Latina teria uma população mais
numerosa que a da Noruega.
Eu me atrevo a pensar
que esta realidade descomunal, e não só a sua expressão literária, que este ano
mereceu a atenção da Academia Sueca de Letras. Uma realidade que não é a do
papel, mas que vive conosco e determina cada instante de nossas incontáveis
mortescotidianas, e que sustenta um manancial de criação insaciável, pleno de
desdita e de beleza, e do qual este colombiano errante e nostálgico não passa
de uma cifra assinalada pela sorte. Poetas e mendigos, músicos e profetas,
guerreiros e malandros, todos nós, criaturas daquela realidade desaforada,
tivemos que pedir muito pouco à imaginação, porque para nós o maior desafio foi
a insuficiência dos recursos convencionais para tornar nossa vida acreditável.
Este é, amigos, o nó da nossa solidão.
Pois se estas
dificuldades nos deixam - nós, que somos da sua essência - atordoados, não é
difícil entender que os talentos racionais deste lado do mundo, extasiados na
contemplação de suas próprias culturas, tenham ficado sem um método válido para
nos interpretar. É compreensível que insistam em nos medir com a mesma vara com
que se medem, sem recordar que os estragos da vida não são iguais para todos, e
que a busca da identidade própria é tão árdua e sangrenta para nós como foi
para eles. A interpretação da nossa realidade a partir de esquemas alheios só
contribuiu para tornar-nos cada vez mais desconhecidos, cada vez menos livres,
cada vez mais solitários. Talvez a Europa venerável fosse mais compreensiva e
se tratasse de nos ver em seu próprio passado. Se recordasse que Londres
precisou de trezentos anos para construir a sua primeira muralha e de outros
trezentos para ter um bispo, que Roma se debateu nas trevas da incerteza
durante vinte séculos até que um rei etrusco a implantasse na história, e que
em pleno século XVI os pacíficos suíços de hoje, que nos deleitam com seus
queijos mansos e seus relógios impávidos, ensanguentaram a Europa com seus
mercenários. Ainda no apogeu do Renascimento, ainda doze mil lansquenetes a
soldo dos exércitos imperiais saquearam e devastaram Roma, e passaram na faca
oito mil de seus habitantes.
Não pretendo encarnar
as ilusões de Tonio Kröger, cujos sonhos de união entre um norte gasto e um sul
apaixonado Thomas Mannexaltava há 53 anos neste mesmo lugar. Mas creio que os
europeus de espírito esclarecedor, os que também aqui lutam por uma pátria grande
mais humana e mais justa, poderiam ajudar-nos melhor se revisassem a fundo a
sua maneira de nos ver. A solidariedade com os nossos sonhos não nos fará
sentir menos solitários enquanto não se concretize com atos de respaldo
legítimo aos povos que assumem a ilusão de ter uma vida própria na divisão do
mundo.
A América Latina não
quer nem tem porque ser um peão sem rumo ou decisão, nem tem nada de quimérico
que seus desígnios de independência e originalidade se convertam em uma
aspiração ocidental.
Não obstante, os
progressos da navegação que reduziram tanto as distâncias entre nossas Américas
e a Europa parecem haver aumentado nossa distância cultura. Por que a
originalidade que é admitida sem reservas em nossa literatura nos é negada com
todo tipo de desconfiança em nossas tentativas difíceis de mudança social? Por
que pensar que a justiça social que os europeus desenvolvidos tratam de impor
em seus países não pode ser também um objetivo latino-americano, com métodos
distintos e em condições diferentes? Não: a violência e a dor desmedida da
nossa história são o resultado de injustiças seculares e amarguras sem conta, e
não uma confabulação urdida a três mil léguas da nossa casa. Mas muitos
dirigentes e pensadores europeus acreditaram nisso, com o infantilismo dos avós
que esqueceram as loucuras frutíferas de sua juventude, como se não fosse
possível outro destino além de viver à mercê dos dois grandes donos do mundo.
Este é, amigos, o tamanho da nossa solidão.
E ainda assim, diante
da opressão, do saqueio e do abandono, nossa resposta é a vida. Nem os
dilúvios, nem as pestes, nem a fome, nem os cataclismos, nem mesmo as guerras
eternas através dos séculos e séculos conseguiram reduzir a vantagem tenaz da
vida sobre a morte. Uma vantagem que aumenta e se acelera: a cada ano há 74
milhões de nascimentos a mais que mortes, uma quantidade de novos vivos
suficiente para aumentar sete vezes, a cada ano, a população de Nova York. A
maioria deles nasce nos países com menos recursos, e entre eles, é claro, os da
América Latina. Enquanto isso, os países mais prósperos conseguiram acumular um
poder de destruição suficiente para aniquilar cem vezes não apenas todos os
seres humanos que existiram até hoje, mas a totalidade de seres vivos que
passaram por esse planeta de infortúnios.
Num dia como o de
hoje, meu mestre William Faulkner disse neste mesmo lugar: "Eu me nego a
admitir o fim do homem". Não me sentiria digno de ocupar este lugar que
foi dele se não tivesse a consciência plena de que pela primeira vez desde as
origens da humanidade, o desastre colossal que ele se negava a admitir há 32
anos é, hoje, nada mais que uma simples possibilidade científica. Diante desta
realidade assombrosa, que através de todo o tempo humano deve ter parecido uma
utopia, nós, os inventores de fábulas que acreditamos em tudo, nós sentimos no
direito de acreditar que ainda não é demasiado tarde para nos lançarmos na
criação da utopia contrária. Uma nova arrasadora utopia da vida, onde ninguém
possa decidir pelos outros até mesmo a forma de morrer, onde de verdade seja
certo o amor e seja possível a felicidade, e onde as estirpes condenadas a cem
anos de solidão tenham, enfim e para sempre, uma segunda oportunidade sobre a
terra.
Agradeço à Academia
de Letras da Suécia por haver me distinguido com um prêmio que me coloca junto
a muitos dos que orientaram e enriqueceram meus anos de leitor e de celebrante
cotidiano deste delírio sem remédio e que é o ofício de escrever. Seus nomes e
suas obras se apresentam hoje para mim como sombras tutelares, mas também com o
compromisso, frequentemente sufocante, que se adquire com esta honra. Uma dura
honra que neles sempre me pareceu de simples justiça, mas que em mim entendo
como mais uma dessas lições com as quais o destino costuma nos surpreender, o
que fazem mais evidente nossa condição joguetes de um fatoindecifrável, cuja
única e desoladora recompensa costuma ser, na maioria das vezes, a
incompreensão e o esquecimento.
Por isso é natural
que eu me interrogasse, lá naquele bastidor secreto onde costumamos
enfrentar-nos às verdades mais essenciais que conformam nossa identidade, a
qual terá sido o sustento constante da minha obra, o que pode ter chamado
atenção de forma tão comprometedora, desse tribunal de árbitros tão severos.
Confesso sem falsas modéstias que não foi fácil encontrar a razão, mas quero
crer que tenha sido a que eu gostaria. Quero crer, amigos, que esta é, uma vez
mais, uma homenagem que é rendida à poesia. À poesia, por cuja virtude o
inventário assustador das náuseas que o velho Homero enumerou em sua Ilíada
está visitado por um vento que as empurra a navegar com sua tristeza intemporal
e alucinada. À poesia, que retém, no delgado andaime dos tercetos de Dante,
toda a fábrica densa é colossal da Idade Média. À poesia, que tão milagrosa
totalidade resgata a nossa América nas Alturas de Macchu Picchu, de Pablo
Neruda, o grande, o maior, e onde destilam sua tristeza milenar nossos melhores
sonhos sem saída. À poesia, enfim, a essa energia secreta da vida cotidiana,
que cozinha seus grãos e contagia o amor e repete as imagens nos espelhos.
Em cada linha que
escrevo trato sempre, com maior ou menor fortuna, de invocar os espíritos
esquivos da poesia, e trato de deixar em cada palavra o testemunho de minha
devoção pelas suas virtudes de adivinhação e pela sua permanente vitória contra
os surdos poderes da morte. Entendo que o prêmio que acabo de receber, com toda
humildade, é a consoladora revelação de que meu intento não foi em vão. É por
isso que convido todos a brindar por aquilo que um grande poeta das nossas
Américas, Luis Cardoza y Aragón, definiu como a única prova concreta da
existência do homem: a poesia.
Muito obrigado.
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