Cordão da Mentira nas ruas do Centro de SP
(Foto Joseh Silva/Carta Capital)
Por Mário Bentes e Leandro Fonseca
Especial para a Revista Babel e Jornal GGN
Foi diante da sede do antigo Departamento de Ordem Política e Social
(DOPS), local símbolo da repressão do Estado durante o regime
Civil-Militar contra os movimentos sociais, que quase dois mil ativistas
se reuniram, na noite deste 1o. de abril.
O ato, chamado “Grande Desfil&scracho do Cordão da Mentira”,
começou a tomar forma por volta das 18h, no Largo General Osório, no
centro antigo de São Paulo. Com samba e batucada, o grupo protestou não
apenas contra as iniciativas de “comemoração” aos 50 anos do Golpe que
afundou o país em 21 anos de ditadura, mas contra o legado que ainda
perdura – principalmente contra o subúrbio, os negros e os pobres.
“A Ditadura acabou, mas esqueceram de avisar a polícia”, bradou
Débora Maria da Silva, representante do Movimento Mães de Maio, grupo
criado como resposta a uma série de chacinas ocorridas em São Paulo em
maio de 2006, e que tenta por fim à tática policial da “resistência
seguida de morte”.
O discurso emocionado marcou a abertura do ato, ainda durante a
concentração. Entre músicas e palavras de ordem, os participantes
traziam informações referentes aos números de mortos nas periferias e as
táticas mantidas pelas forças repressivas do Estado, nos tempos
democráticos.
Em entrevista à reportagem após o discurso, Débora Maria da Silva
disse ainda que o Cordão “lava a alma” e “desmascara a mentira”. “As
Mães de Maio vêm aqui como símbolo da falsa democracia”. Além da
desmilitarização das polícias, Débora afirma que é necessário haver uma
reforma do Poder Judiciário.
“O [Poder] Judiciário é um dos que perpetuam a impunidade. Ele não
age com um revólver que sai bala, mas sim com uma canetada”, afirma.
Além disso, ela diz que as principais vítimas da polícia militarizada
são pobres, negros e moradores das periferias, pois o Brasil é “produtor
de Mães de Maio”. “Estamos fazendo o escracho e dizendo ‘nós estamos
vivos, nossos mortos têm voz e estamos aqui para lutar por eles’”, diz.
“Ancestralidade”
“Podemos ir além e dizer que estão aqui também toda uma geração de
ancestralidade. O genocídio nesse país não começou nem em 64, nem em
2006, ele é histórico, ele é da fundação dessas terras, desde os povos
negros, os povos indígenas que sofreram. A história desse país deve ser
contada pela luta dos povos e sua resistência, não pelas suas derrotas.
Adolescentes cumprindo medida socioeducativa em unidades da Fundação
Casa, em São Paulo, são constantemente agredidos, castigados e
torturados”, afirmou Ruivo Lopes, também durante discurso.
“Numa recente tentativa de fuga, dois adolescentes foram encontrados
mortos no Rio Tietê. Foi em 2014, não foi em 1964. Cláudia Silva
Ferreira foi baleada por policiais militares no Morro do Congonha, onde
morava. Mal socorrida na viatura, seu corpo foi arrastado e esfolado por
350 metros. Os policiais militares envolvidos na morte de Cláudia têm
histórico de execuções sumárias e violência policial. Foi em 2014, mas
poderia ter sido em 1964”, prosseguiu.
Quem também discursou foi Alípio Freire, jornalista, ex-preso
político e diretor do documentário “1964 – Um Golpe Contra o Brasil”.
Ele afirmou que o “terror do Estado” no país é antigo, estando presente
em diversas épocas da história, como na Colônia, Império e República, e
toma como “fundamental” a desmilitarização das polícias. “Nós sabemos
que, desde o fim da ditadura até hoje, milhares de brasileiros foram
assassinados nos campos e nas cidades. Nenhum assassinado nos Jardins,
no Pacaembu, em Higienópolis ou no Morumbi”, diz.
Contra a mentira
Reiterando os discursos abertos, Thiago Brandimarte Mendonça, um dos
organizadores do ato, também falou com a reportagem. “A força do cordão,
está na forma como ele sai nas ruas. A batalha a partir da estética
para ressignificar a política. Isso é tão poderoso que faz com que os
grandes meios de comunicação prefiram ignorar o cordão, mesmo com
milhares de pessoas nas ruas, semanas depois de dar uma ampla cobertura a
uma esvaziando marcha de maníacos pedindo um novo golpe”.
Colocar frente à frente as ditaduras – a de 1964 e as que persistem
até 2014 – é outro objetivo do ato realizado pelas ruas de São Paulo. “A
força do cordão é de dizer que a ditadura não acabou e não vai acabar
enquanto não enfrentarmos de frente os grupos econômicos e políticos que
foram vitoriosos em 64 e que continuam no poder. Não enfrentarmos a
forma como se manifesta a violência do Estado, que serve para manter o
status quo”, conclui.
Escracho pelas ruas
Após a concentração no Largo General Osório, no centro antigo da
capital, no Memorial da Resistência, o grupo seguiu pelas ruas ao som de
samba e batucada, passando pelo 3º Distrito Policial e Largo do
Paissandu – neste ponto, um momento de tensão: parte do grupo gritou
palavras de ordem a um grupo de PMs que estava a postos em duas
viaturas. Os policiais não reagiram, e, em seguida, entraram nas
viaturas e saíram do local – para frenesi do grupo.
Ao longo do trajeto, os ativistas e foliões fizeram várias
intervenções artísticas com forte teor político. A rua General Couto de
Magalhães, por exemplo, foi rebatizada com o nome de Rua Carlos
Marighella – nome de um dos líderes da resistência contra a Ditadura
Civil-Militar no país, e que acabou morto em 1969 em uma emboscada.
Nomes como “MC Daleste”, funkeiro de apenas 20 anos que foi
assassinado durante um show em Campinas, no ano passado; “Vladimir
Herzog”, torturado e assassinado pela Ditadura, “Cláudia Silva
Ferreira”, a moradora do Morro do Congonha que foi baleada pela PM e
ainda teve o corpo arrastado por 350 metros. Todos eles foram grafados
nas ruas e faixas de pedestres, como protesto contra a violência
policial.
Tentativa de intimidação
Após a passagem do grupo pela Praça da República, de acordo com
Thiago Brandimarte, houve o que ele classifica de tentativa de
intimidação “ostensiva e desnecessária” por parte da Tropa de Choque da
PM, que passou a acompanhar o grupo a parti dali.
“Respondemos formando um cordão de proteção a todos os
manifestantes/foliões. Cordão que dançava e cantava em resposta à
violência do Estado. Postura contrária à que a polícia teve na Marcha da
Família, onde desfilaram juntos. A lógica era causar medo, mas ao
contrário, fortaleceu o sentido de estarmos nas ruas”, disse.
Ainda assim, a adesão foi grande, tomando mais corpo à medida em que o
grupo andava. Thomaz Barbeiro Gonçalves, de 24 anos, estudante de
História da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), diz que o
Cordão da Mentira tem a potencialidade de trazer a questão da violência
estatal ocorrida no passado, na ditadura militar, e no presente, no
assassinato de jovens pobres, negros e periféricos.
“A estrutura do Estado existe desde a época da ditadura
civil-militar, que mantém as desigualdades muito fortes. A violência da
periferia aumentou, mas muito em consequência pelo fato de não haver
punição aos torturadores no passado”, afirma.
A instrutora de informática Sara Maria da Silva, 35, diz que ficou
sabendo do evento através de um amigo, no Facebook. Para ela, o Cordão
significa um protesto das camadas marginalizadas da sociedade. “O Cordão
da Mentira é um basta do povo cansado, lutador, guerreiro, oprimido, do
gueto, da favela, negro, GLS, o povo que corre pra ter o mínimo de
dignidade e que está cansado de toda essa presepada que está ocorrendo
em nossa política hoje”, conta.
O ato terminou por volta das 22h, após ainda passar pelo Elevado
Costa e Silva, Rua Maria Antônia, ruas Sabará e Piauí e encerrar à
frente da sede do enfraquecido grupo da TFP – Tradição, Família e
Propriedade, organização que foi um dos pilares que ajudaram a formar o
cenário do Golpe.
Publicada originalmente pela Revista Babel, em 2 de abril de 2014.
Ouça as marchinhas do Cordão da Mentira aqui.
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