Por Leandro Fonseca | Jaçanã | São Paulo | SP
Os distritos de Brasilândia e Pirituba, na Zona Norte da cidade de São Paulo, têm em comum, além do baixo índice de desenvolvimento humano e a escassez de equipamentos culturais, a vitalidade de uma cena cultural surgida nos saraus. Sem apoio ou recursos outros que o empenho de seus organizadores, estes eventos promovem iniciativas culturais como bibliotecas comunitárias, shows e declamação de poesia.
No número 288 da rua Jurubim, pairava um ar de festa. Bandeirolas em verde e amarelo, pôsteres do Santos Futebol Clube e tecidos coloridos por todos os cantos enfeitavam o interior do Bar do Santista. No estreito balcão, copos e garrafas de cerveja se misturavam aos livros e poesias. Já havia anoitecido em Pirituba, no extremo norte de São Paulo, e todos ali aguardavam o Sarau Elo da Corrente começar.
O evento anima as noites da pequena localidade desde 2007. Pirituba tem, de acordo com dados de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 168 000 habitantes, e apenas 1,29% dos equipamentos culturais públicos da cidade. Para Raquel Almeida, uma das fundadoras do Elo da Corrente, a escassez desses espaços impulsionou a criação do sarau. “Isso influenciou o sarau ser feito num bar e construirmos um espaço cultural”, diz.
A iniciativa partiu dela, de Michel Yakini e do grupo de rap Alerta ao Sistema, colegas na rádio comunitária Urbanos FM. Juntos, começaram organizando o lançamento de um livro no Bar do Santista. E não pararam mais. A proximidade do grupo com a poesia e a música influenciou no formato do sarau. “A poesia tá muito forte na nossa vida cotidiana, em casa, nas ruas, assim como a música”, diz Raquel.
Para Michel, os saraus refletem o encontro do rap e da cultura nordestina. O rap se propagou nas periferias de São Paulo e ajudou no surgimento de saraus e grupos artísticos. A cultura nordestina, por sua vez, está presente nestes bairros através dos migrantes que lá se instalaram. “Por isso, encontramos nos versos de quebrada a diversidade que a periferia carrega em seu colo”, opina.
Frequentador assíduo do sarau há muitos anos, o aposentado Zé Correia, 75, representa esta mistura. Baiano, ele teve contato na infância com a literatura de cordel. “Fui pra escola por dois anos, sou analfabeto. Tenho livro, tenho cordel, faço minhas poesias. Foi um dom que Deus me deu, mas me considero analfabeto”. Para ele, participar do sarau também propicia uma vida em coletividade. “Se eu não estivesse aqui uma hora dessas, estaria isolado em casa”.
A estudante Yasmim Frajuca, 21, participava pela primeira vez do encontro, convidada por um amigo. Para ela, o sarau abre as portas para a arte. “O Elo da Corrente, em especial, localizado na periferia, tem muita relevância nisso. Arte viva, gente compartilhando e aplaudindo arte do irmão”, conta.
Atualmente, o evento é capitaneado por Michel, Raquel, Santista e Douglas Alves, todos de Pirituba. “O restante do bairro respeita nosso encontro, ajuda a divulgar, dialoga e procura entender”, diz Michel. Há também a participação de professores e alunos das escolas da região. Além disso, o sarau atua em parceria com outros coletivos da zona norte e conta, desde 2011, com uma versão itinerante no circuito das bibliotecas públicas de São Paulo, através do projeto “Literatura Periférica, Veia e Ventania nas Bibliotecas de São Paulo”. “Nem todo mundo frequenta e gosta de bar” observa Raquel, apontando que os espaços têm públicos diferentes.
Para Michel, o sarau proporcionou transformações em Pirituba, desmanchando o estereótipo de que periferia é sinônimo de criminalidade. Além da poesia, o Elo da Corrente mantém outras atividades no local, como oficinas de grafite, stêncil e capoeira, e cursos para editais públicos e vestibular.
Na Brasa, a poesia
Em Brasilândia, também na Zona Norte de São Paulo, outro bar assumiu a função de centro cultural graças à ação de um grupo de amigos. O Bar do Carlita recebe o Sarau Poesia na Brasa todos os meses, desde 2008. “A ideia era fazer um centro cultural, mas como não tínhamos pernas naquele momento, optamos por alcançar ou tentar alcançar o maior número de moradores do bairro num local comum”, conta Michell da Silva, 30, popularmente conhecido como Chellmí, um dos idealizadores do sarau. “Daí então surgiu a ideia de fazer dentro do bar, que é um dos espaços que consideramos democráticos na quebrada”.
Assim como em Pirituba, Brasilândia não possui espaços culturais, embora contabilize 265 000 habitantes no Censo de 2010. “Os poucos que têm muitas vezes não se preocupam em dialogar conosco e com outros grupos da região, aí fica difícil”, afirma Chellmí. Dos 96 distritos em São Paulo, a região ocupa o 89º lugar na lista dos Índices de Desenvolvimento Humano (IDHs), o pior da Zona Norte paulistana.
O grupo que compõe o Coletivo Cultural Poesia na Brasa conta também com Vagner Souza, Sonia Regina Bischain, Samanta Biotti, e Sidnei das Neves. Além da atividade em si, eles mantêm dentro do bar a biblioteca comunitária Carlos de Assumpção. Nela, há títulos como “Terras do Sem Fim”, de Jorge Amado, “O Visconde Partido ao Meio”, de Italo Calvino e “Amor de Perdição”, de Camilo Castelo Branco. “Quem quiser leva livro emprestado sem burocracias institucionais. Isso é libertário” opina Chellmí.
O músico Otavio Correia, 24, foi ao sarau pela primeira vez em 2011, incentivado por amigos, membros do coletivo. Para ele, os saraus que atuam nas periferias oferecem antes de tudo um espaço de criação, de disseminação cultural e de construção de pensamento coletivo. “[Os saraus] ajudam na percepção dos mecanismos de opressão, disseminando a cultura popular e mantendo-a viva”, afirma.
Tambores e pandeiros costumam dar ritmo ao Poesia na Brasa, junto com a declamação de versos. “Começar cada encontro do sarau com o rufar dos tambores, atabaques e outros instrumentos tradicionais encontrados em terreiros, rodas de samba e maracatus é fundamental para compreender as raízes às quais se referem o sarau”, explica Ruivo Lopes, 35, poeta, educador popular e ativista pelos direitos humanos, que frequenta também o sarau desde 2011.
Segundo Sonia, outra virtude dos saraus é a de dar voz e espaço a talentos artísticos do bairro. “Você encontra um monte de gente que escreve muito bem e que não teve nenhuma oportunidade antes de mostrar. Aqui é um espaço aberto. O cara quer cantar uma música, ele canta. Escreve um verso em casa, vem aqui e lê”.
O sarau que nasceu da luta
Esta também é a opinião do jornalista Cleber Arruda, 32, um dos organizadores de outro sarau em Brasilândia, o Sarau do Damasceno. “Depois do sarau, a gente descobriu escritores dentro do Damasceno, três bandas diferentes. Tem muita gente boa aqui produzindo e que precisa também de um espaço pra se apresentar”.
O Sarau do Damasceno surgiu em 2013, quando a Prefeitura de São Paulo anunciou o projeto de interdição do Espaço Cultural Jardim Damasceno, existente há mais de 20 anos. “Nascemos nesse momento de pensar como fazer resistência. Saiu essa ideia do sarau”, comenta Noêmia de Oliveira Mendonça, 54, uma das organizadoras do evento.
Como nos outros casos, a região sofre com a falta de equipamentos culturais públicos. Segundo Cleber, o Jardim Damasceno não possui outros saraus. “As pessoas nem sabem o que é sarau, aqui. Se precisar ir num próximo, tem o da Brasa, ou pegar um ônibus pra curtir alguma coisa porque falta esse tipo de equipamento cultural”.
O primeiro encontro do sarau teve como atração a banda de forró do bairro, Fakes do Baile. O evento acontece todo segundo sábado do mês, mesmo sem recursos. “Tudo é feito a partir da iniciativa do grupo aqui. A dificuldade também é de trazer gente. Sempre tem que ter alguma coisa que mobilize, que não seja só poesia”.
A maior satisfação do grupo é ver nascer o gosto pela literatura nas crianças. “As crianças estão pegando o livro e lendo, perdendo a vergonha de pegar o microfone e começar a ler”, conta Cleber. “Quem mais tem comprado a ideia do sarau são as crianças e os adolescentes, mais do que os adultos. Eles cobram o dia do sarau”, completa Noêmia.
Iva Mendes, 39, outra organizadora do sarau, espera que o trabalho possa mostrar à juventude que existem alternativas na região. “Infelizmente moramos num bairro muito carente, onde o uso das drogas é muito evidente, por falta até mesmo de espaço pra atividades culturais”, afirma. Para ela, ainda é um desafio fazer com que os jovens participem mais do evento. “Infelizmente, sarau, pra juventude, é coisa pra velho. A gente pretende mostrar pra juventude que o sarau, a poesia, a música não são coisas de velho, é coisa de jovem também”, finaliza.
A reportagem foi publicada originalmente no sítio Viva Favela, em 06/06/2014.
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