Barco lotado de pessoas naufraga no Mar Mediterrâneo
Só tenho minha roupa,
crianças e mulher...
escombros em minhas costas
e a terra sob meus pés
Minha família eu entreguei
para um barqueiro oferecido
Meu dinheiro eu deixei
nas mãos de desconhecidos
A bordo de um bote inflável
foi lançado o meu destino
nas águas frias do Mediterrâneo
eis um novo clandestino
Se o mar for generoso
e a chuva cair amena
e ninguém se desesperar
com o choro das crianças,
sedentas e famintas,
e o bote não virar,
quem sabe
nossas vidas
não fique
no Gibraltar
Em meu país
já fui clandestino
Corri de belgas, franceses,
ingleses, espanhóis,
portugueses, estadunidenses
Corri de todos eles
Em minha cidade
já me iludi
com missões de paz,
liberdade e prosperidade
que fomentaram mais guerra
Me iludi com todas elas
Em minha vila
fui impedido de falar
Minha língua foi proibida
por outra ultramar
E agora não querem me escutar
Desejei a Primavera
renovada em Damasco
e amargurei um porvir
que nunca se realizou
Papel nenhum tem valor
quando se esta em alto mar
A lei num bote inflável é sobreviver
e chegar em paz em algum lugar
A noite turva o horizonte
A manhã lembra que ainda estamos vivos
O mar deixa o corpo salgado
e o sol deixa a pele queimada
A maresia é companheira de travessia
- Vão nos resgatar.
Alguém exclama baixinho
Talvez seja uma mãe
abraçada a seu filho,
talvez seja alguém
delirando nalgum canto
Se tivermos sorte
seremos resgatados com vida
já que a dignidade foi perdida
durante a noite... ou era dia?
O que devo dizer
se eu for resgatado?
Ajude-me... Aiutatemi
Eu sou como você... Yo soy como tú
Não sou terrorista... Ich bin kein Terrorist
Amigo... Ami
Um dia corri deles
e agora eles correm de mim
Me pegam com luvas nas mãos
Me tiram do inferno do mar
e me colocam no inferno da terra
Me chamam de clandestino,
sem papel, imigrante,
refugiado, sem destino
Nunca pelo meu nome
Acaso não tenho direito a um nome,
a uma genealogia, a memória
e lugar?
Todas as histórias que ouvi
de guerras e campos de concentração,
tudo o que me contaram os viajantes
sobre vagões lotados, frio e fome
tudo o que aprendi na escola
sobre liberdade, igualdade e fraternidade,
morreram na praia
como Aylan Kurdi
Terei forças para escalar o muro,
fugir dos cães e dos policiais?
Minha pele resistirá ao arame farpado?
Minha família terá a mesma sorte?
Nas estradas, trilhos e montanhas,
se meus pés aguentarem,
para onde me levarão?
Ouvi dizer que alguns foram abandonados
mortos trancados num baú de caminhão
faltou ar num ambiente sufocante
Mesmo mortos nos abandonam
Somos garrafas lançadas ao mar
Somos a mensagem em carne e osso
Somos fantasmas vagando na terra
Náufragos da civilização
Perdidos num túnel sem saída
Suplicando na porta da fortaleza
Enquanto levamos uma vida proibida
Turistas cruzam o Gibraltar
Os corações estão salgados
e nossa humanidade
está à deriva
em algum bote inflável
em alto mar
Ruivo Lopes
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