Por Juca Guimarães para o Diário de São Paulo
Oficialmente, a cidade de São Paulo tem 60 bibliotecas públicas. Por
sua vez, a população mantém ativas 110 bibliotecas comunitárias. Nas
peiferias da capital, os pontos de conhecimento compartilhado são
fundamentais para difundir o hábito da leitura.
A grande maioria as bibliotecas comunitárias ficam em bairros
afastados do Centro ou atendem a públicos excluídos, que não podem usar
as bibliotecas públicas.
Há quatro anos, o ex-morador de rua Robson Mendonça, de 64 anos,
criou o conceito das biciclotecas e pôs o projeto em prática . "Como eu
vivia em situação de rua, não era bem visto dentro das bibliotecas e
também não tinha endereço fixo para poder retirar livros para ler",
disse. Usando como exemplo a sua experiência pessoal, Mendonça
idealizou as biciclotecas. "Não tem nenhuma burocracia ou
constrangimento. O únicio compromisso do leitor é fazer o livro circular
entre as pessoas", disse.
Atualmente, o projeto conta com a parceria do Instituto Mobilidade
Verde e tem nove biciclotecas circulando pela cidade. Sete no Centro,
uma em Pinheiros e uma em Paraisópolis. O acervo é de 30 mil livros.
"Às quartas, sempre tem uma bicicloteca no parque da Luz para atender
as profissionais do sexo e os frequentadores do local. A literatura é
enriquecedora e deve estar disponível a todos", disse.
Em Paraisópolis, existe há 18 anos a biblioteca Becei. É a primeira
biblioteca comunitária dentro de uma favela no país. "O acervo tem 12
mil livros e funciona de domingo a domingo, inclusive nos feriados",
disse Alê Cabral, responsável pela Becei. A biblioteca sobrevive de
doações. O telefone de contato é 11 3507 7531.
No Jardim Comercial, na região do Capão Redondo, o escritor Ferréz
mantém desde março de 2009 a ONG Interferência. Um verdadeiro oásis de
cultura e educação em um dos bairros mais carentes de livros da
capital. Na ONG Interferência são atendidas 140 crianças.
Na região Central, as ocupações dos movimentos por moradia abrigam
dezenas de bibliotecas comunitárias que promovem o hábito da leitura. O
militante Ruivo Lopes foi o responsável pela montagem de muitas dessas
bibliotecas.
Confira a entrevista com o Ruivo
Qual a sua relação com a leitura e as bibliotecas?
Cresci numa família onde livro e leitura não eram prioridades. tínhamos preocupações mais urgentes que batiam na porta e no estômago. Nos anos de 1980, um livro recém-lançado poderia custar mais caro que um gás de cozinha. então era preciso ter prioridade. me lembro de dois livros em casa, um era a Biblía da minha mãe e o outro era um livro de receita de bolos e doces trocados por selos recortados dos pacotes de açúcar. e como comíamos açúcar, os dentes não negam. Mesmo tendo aprendido a ler e a escrever, fui ser leitor muito mais tarde. Quando descobri as literaturas, tentei recuperar as leituras perdidas e ainda hoje me sinto atrasado. Tô sempre com um livro na mão. Isso me fez pensar que este atraso na verdade não é questão de tempo, mas uma condição social que viola o direito humano à leitura e às literaturas. estudei em escolas que quando tinham bibliotecas era inacessíveis, não tinham funcionários ou quando tinham elas ficavam furiosas quando mexíamos nos livros, como se fossem apenas pra admirá-los, mas a distância. Não havia uma cultura de empréstimos de livros de bibliotecas públicas, tampouco havia estímulo pra isso. os primeiros livros que li foram emprestados de pessoas. Eu lia, devolvia, discutíamos e só depois pegava outro. Eram pessoas que tinham livros em casa e construíram seu acervo de modo colaborativo. Assim, ajudei a montar algumas bibliotecas comunitárias dentro de casas, coletivos e associações comunitárias. Por questões de dificuldade de manter os espaços, quase sempre alugados, as pessoas saíam e quase sempre os livros ficavam. Tudo isso me fez refletir sobre o papel de uma biblioteca no modelo estático, de acervo, estantes repletas de livro sem nunca terem sido abertos ou saído do lugar. Quando retomei a iniciativa de montar bibliotecas comunitárias, pensei que ao invés de um local fixo, fosse melhor que cada família tivesse seu próprio acervo literário a mão, ou seja, é melhor o livro na mão do que numa prateleira empoeirada, comido pelas traças. Vem dando certo.
Cresci numa família onde livro e leitura não eram prioridades. tínhamos preocupações mais urgentes que batiam na porta e no estômago. Nos anos de 1980, um livro recém-lançado poderia custar mais caro que um gás de cozinha. então era preciso ter prioridade. me lembro de dois livros em casa, um era a Biblía da minha mãe e o outro era um livro de receita de bolos e doces trocados por selos recortados dos pacotes de açúcar. e como comíamos açúcar, os dentes não negam. Mesmo tendo aprendido a ler e a escrever, fui ser leitor muito mais tarde. Quando descobri as literaturas, tentei recuperar as leituras perdidas e ainda hoje me sinto atrasado. Tô sempre com um livro na mão. Isso me fez pensar que este atraso na verdade não é questão de tempo, mas uma condição social que viola o direito humano à leitura e às literaturas. estudei em escolas que quando tinham bibliotecas era inacessíveis, não tinham funcionários ou quando tinham elas ficavam furiosas quando mexíamos nos livros, como se fossem apenas pra admirá-los, mas a distância. Não havia uma cultura de empréstimos de livros de bibliotecas públicas, tampouco havia estímulo pra isso. os primeiros livros que li foram emprestados de pessoas. Eu lia, devolvia, discutíamos e só depois pegava outro. Eram pessoas que tinham livros em casa e construíram seu acervo de modo colaborativo. Assim, ajudei a montar algumas bibliotecas comunitárias dentro de casas, coletivos e associações comunitárias. Por questões de dificuldade de manter os espaços, quase sempre alugados, as pessoas saíam e quase sempre os livros ficavam. Tudo isso me fez refletir sobre o papel de uma biblioteca no modelo estático, de acervo, estantes repletas de livro sem nunca terem sido abertos ou saído do lugar. Quando retomei a iniciativa de montar bibliotecas comunitárias, pensei que ao invés de um local fixo, fosse melhor que cada família tivesse seu próprio acervo literário a mão, ou seja, é melhor o livro na mão do que numa prateleira empoeirada, comido pelas traças. Vem dando certo.
Como é a organização das bibliotecas comunitárias nas ocupações?
Em alguns imóveis abandonados pelos proprietários devedores de
milhares de reais em IPTU, ocupados por famílias sem teto ligadas aos
movimentos de moradia, passei a organizar os livros em caixas e
colocá-las a disposição logo na entrada com um cartaz escrito "Pegue um
livro e ganhe um amigo". Os livros desapareciam em pouco tempo. As
pessoas voltavam do trabalho, passavam na portariae davam de cara uma
caixa simpática, cheia de livros bons, selecionados, passavam a mão num
livro. Se gostou, fica com ele. Se não gostou, põe na caixa de novo,
ou faça o que quiser, só não ponha numa prateleira pra sempre, porque
isso é a morte do livro. A vantagem é que, caso as famílias fossem
despejadas pela reintegração de posse, o livro faria parte dos pertences
da família como o colchão, o cobertos, o travesseiro e as panelas.
Diferentemente quando, numa situação dessas, que é terrível para
qualquer família sem teto, os livros numa espaço reservado não são de
ninguém. Por isso, muitas vezes ficavam pra trás. Encontro muitas
famílias sem teto, inclusive crianças, que anos depois ainda guardam
seus livros.
Como você teve contato com as entidades que lutam por moradia?
Os movimentos de moradia intensificam as denúncias de abandono e
dívida dos imóveis em São Paulo, desde dos anos 2000. Eu sempre fiz
parte de organizações culturais que organizavam apresentações para
arrecadar doações para as famílias sem teto. no meio disso, fui
arrecadando livros. muitos imóveis ocupados pelas famílias sem teto de
lá pra cá foram despejados. mas levei muito livro pra ocupação do prédio
da avenida prestes maia - hoje ameaçado de despejo -, quando ele foi
ocupado pela primeira vez, havia um acervo de livros impressionante e um
senhor que era apaixonado pelos livros que morava lá e cuidava de tudo.
Na primeira ocupação do prédio do INSS da avenida Nove de Julho, o
primeiro andar era um centro cultural e tinha também uma biblioteca. Na
ocupação da avenida São João, tinha uma biblioteca muito requisitada
pelas famílias que moravam lá. Com a metodologia de livro na mão,
fizemos muita distribuição de livros na ocupação mauá, na estação da
Luz.
Como você conseguia os livros?
Os livros são de doações, compras baratas em sebos e brechós, livros
de R$ 1, cinquenta centavos, mas livros bons, poesia, literatura
brasileira, romances, infantil, pra colorir, gibis, dicionários. muita
gente da nova cena literária marginal da periferia doou livros também e
foram lá nas ocupações mostrar que escritor e escritora também são
vivos, de carne e osso e não precisam morrer pra serem lidos. Até hoje é
assim.
O que mudou no dia-a-dia da ocupação com a biblioteca lá?
Muita gente sem teto que veio morar na região central da cidade
aproveitou as condições que o centro oferece e voltou a estudar, por
exemplo. tenho uma grande amiga, liderança sem teto, que hoje estuda
letras numa faculdade por conta da leitura e depois porque ela passou a
escrever poemas também. Vi muita gente buscar na biblioteca livros que
não tinham nas escolas. Também vi muitas mulheres procurando o Estatuto
da Criança e do Adolescente, a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, a Constituição Cidadã porque estavam interessadas e saber mais
sobre os direitos e fazer formação popular com outras mulheres. dei
muito livro até pra quem não sabia ler, mas porque considero que o livro
é um direito humano. vi gente se esforçar pra ler poemas. e vi também
quem nunca tinha lido uma linha contar histórias belíssimas registradas
na memória. hoje é muito comum nas ocupações dos movimentos de moradia
ter espaços reservados para educação e cultura e o livro tem lugar
garantido. Acho que não só mudou o no dia a dia pra muita gente, mas
também na dinâmica dos movimentos sem teto. a moradia é um direito
fundamental, mas é muito mais que um teto pra morada, é também acesso a
bens culturais negados junto com o direito a moradia digna.
Nas bibliotecas que você montou também tem atividades culturais?
Sim. aliás, numa das ocupações, o sarau foi responsável por tirar
muito livro das prateleiras. A ideia era a seguinte. O livro era seco,
mas tinha uma poesia saborosa. Então era preciso falar essa poesia pra
saber que aquele livro escondia o ouro. Então fizemos o seguinte,
convidamos as famílias pra participar de um sarau onde a gente ia falar
poesia. As crianças foram as primeiras a participar. Fizemos uma roda
com os livros no meio. As crianças adoram os livros. Elas brincam com os
livros e não deve ter problema nenhum nisso. Quer coisa mais gostosa do
que brincar com um livro.
Publicado originalmente no Diário de São Paulo.
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