quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Meu amigo, Paulo Freire!



São Paulo, 2 de dezembro de 2015.

Meu amigo, Paulo Freire!

Espero que esta carta o encontre bem!

Na última vez em que eu o ouvi, fiquei muito comovido quando o senhor disse que estava muito cansado, embora estivesse muito feliz em estar vivo e morreria feliz em ver um Brasil em seu tempo histórico cheio de marchas, mas as “marchas dos que não tem escola, marcha dos reprovados, marcha dos que querem amar e não podem, marcha dos que se recusam a uma obediência servil, marcha dos que se rebelam, marchas dos que querem ser e estão proibidos de ser...”. Como o senhor mesmo disse, “as marchas são andarilhagens históricas pelo mundo”. Já se passaram alguns anos desde aquela última vez, de lá pra cá, toda vez que demos um passo o mundo saiu do lugar. 

O senhor, como sempre, me pondo a pensar. Como um homem que conheceu tão bem a nossa gente, que conviveu tanto com a nossa gente, que conversou tanto com a nossa gente, que pensou tanto com a nossa gente, que se dedicou a vida inteira a nossa gente, pudesse estar cansado... cansado e feliz? Afinal, é a tua gente o motivo da tua felicidade, amigo Paulo!

É por isso que os donos do poder atentam contra a tua gente, como se fôssemos uns “desabusados... destruidores da ordem”, quando na verdade afirmamos que “é preciso mesmo brigar para que se obtenha o mínimo de transformação”. O teu desejo, o teu sonho, era o de que as marchas dos “sem” acontecessem para nos afirmarmos como gente e como sociedade querendo democratizar-se.

O senhor que nos agraciou com a mais potente “Pedagogia do Oprimido”, elevou a “Educação como prática da liberdade”, e estimulou a “Ação cultural para a liberdade”, fez da “Pedagogia da autonomia” um norte, no qual “a leitura de mundo precede a leitura da palavra”, sem abrir mão da “Importância do ato de ler”, nutrindo-nos de “Pedagogia da esperança”. Nem a perseguição, nem a prisão, nem a censura, nem o exílio o cansaram. Por que o cansariam agora, quando mais precisamos da vitalidade do senhor?

Meu amigo, Paulo. Preciso contar-lhe algo surpreendente. Há algumas semanas, estudantes secundaristas de escolas públicas de São Paulo mobilizaram-se e ocuparam as escolas estaduais contra a intransigência política e o autoritarismo mais atroz dos mandatários de plantão da Secretaria de Estado da Educação do Governo de São Paulo. Estes mandatários querem a todo custo promover uma desorganização do sistema misto do ensino fundamental e médio na mesma unidade escolar. Além de separar os estudantes, irmãos e irmãs em anos diferentes, estes mandatários anunciaram o fechamento de escolas e irão aumentar ainda mais a quantidade de estudantes por sala de aula, prejudicando ainda mais o processo de aprendizagem da turma de educandos, como também de educadores que ficarão pressionados entre carteiras e lousas nas salas de aula já superlotadas. 

Amigo, Paulo. O senhor, depois de andarilhar com os oprimidos pela America-Latina, Europa e África, foi Secretario de Educação da cidade de São Paulo, dialogando com todo mundo disposto a falar e também a ouvir. Ninguém mais do que o senhor sabe o valor da fala do oprimido que ao falar denuncia sua opressão e ao fazê-lo conscientiza-se “da tomada de decisão de intervenção no mundo”. O senhor que como Secretário Municipal de Educação acabou com as “delegacias de ensino”, porque delegacias são de polícia e não de ensino, e criou os Núcleos de Ação Educativa, unindo prática e reflexão pedagógica com e entre educadores e educandos. O senhor ficaria feliz se pudesse estar aqui para conferir a vitalidade, a disposição, a coragem e o sorriso que só a meninice consegue nos agraciar. Esses meninos e meninas que ainda estão se fazendo gente têm passado noites em salas e pátios de escolas ocupadas, organizam-se para a limpeza, para alimentarem-se, para promover a própria segurança, realizam assembleias, discutem os feitos do dia e planejam o dia seguinte, e assim “contrariam as estatísticas”, tomando para si a possibilidade de decidirem sobre o próprio futuro. 

O senhor nunca deixou que esquecêssemos que não há possibilidade de educação apartada da cultura e que não há cultura apartada da educação. Sabemos que a truculência e a ideologia da ditadura militar nunca permitiram que a escola fosse um centro cultural de aprendizagem mútua e que anos mais tarde, a truculência política impediu que nossa amiga Marilena Chauí, então Secretária Municipal de Cultura, ao teu lado, fizesse das casas de cultura da Cidade de São Paulo, espaços educativos de modo que escolas e casas de cultura complementar-se-iam tal qual Cultura e Educação devem complementar-se, emaranhar-se, de modo que o sujeito da cultura e da educação seja os educandos. 

Em uma escola ocupada e gerida pelos estudantes, prestigiei uma apresentação de teatro cujo mote era a rebelião dos trabalhadores cansados da opressão dos patrões. Vi amigos dos estudantes promovendo oficinas de estêncil, comunicação alternativa, cartazes, capoeira, música, sarau de poesia e etc. Vi pais e mães ao lado dos filhos e filhas, juntos, e não era nenhuma reunião protocolar de pais e mestres e sim a participação tão desejada da comunidade na vida escolar. Vi professores e professoras dialogando em profunda comunhão, chamando os estudantes pelo primeiro nome e sendo chamados pelo primeiro nome, aprendendo juntos a conviver fraternalmente como sempre desejamos. Vi pessoas doando livros, mantimentos, produtos de limpeza e etc., como demonstração de apoio aos estudantes. Vi pessoas dispostas a dialogar com os estudantes sobre consenso, organização, feminismo, negritude, LGBT, direitos humanos, educação popular e etc. Vi pessoas disposta a ajudar de qualquer forma, a ouvir o que os estudantes têm a dizer e simplesmente estar ali, solidarizando-se. E numa das escolas ocupadas, vi no pátio, bem ao fundo e no alto, o teu retrato mais bonito, como se estivesse olhando a e por todos nós, testemunhando o movimento da história e feliz por estar presente. Posso imaginar o senhor sentado ali, junto com os estudantes, muito a vontade entre a tua gente, trocando histórias com eles como se estivesse ao pé de uma mangueira. 

A cegueira e a surdez política dos mandatários de plantão da Secretaria de Estado da Educação enchem os brutos de orgulho muito mais do que bom senso. É espantoso como um aparato tão poderoso da educação pode ser manipulado por mandatários inescrupulosos e belicosos que, sem nenhuma vergonha, declaram “guerra” ao bem mais precioso da educação que é os estudantes, sujeitos da educação, sem os quais a Secretaria de Estado da Educação não passa de uma ostra moribunda, ensimesmada, destinada a prisão ao próprio casco. O Estado declarou “guerra” aos estudantes por estes recolocarem na ordem do dia a educação pública. Na ausência de dialogo, o Estado responde declarando a mais bestial “guerra” suja!

Amigo, Paulo. Os estudantes estão tomando as ruas da Cidade para buscar dialogo com cidadão e cidadãs ainda penetráveis pela sensibilidade necessária que nos irmana a todos. As polícias agem como os mais ferozes, sedentos e bestializados cães raivosos a serviço dos poderosos. Contra a imposição da desorganização escolar, os estudantes respondem com a afirmação de que “não tem arrego”!

Como o senhor bem disse, “é preciso ir além da passividade com uma postura rebelde e criticamente transformadora do mundo”. Estes estudantes ainda pouco o conhecem, mas o senhor ficará feliz quando o conhecê-los.

Estes estudantes estão escrevendo os novos rumos da educação pública, nem eles, nem a sala de aula, nem as escolas hoje ocupadas serão as mesmas. Como o senhor, eu também estou feliz por testemunhar a vitalidade da história, que não está determinada, mas que ainda está por se fazer. 

Abraço do amigo de sempre,

Ruivo Lopes

P.S.: permita-me, pelo profundo respeito e admiração, que eu o chame nesta carta carinhosamente de “senhor”.

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