quarta-feira, 24 de março de 2010

Achados e perdidos

Sebos me atraem. Aonde quer que eu esteja, dificilmente passo por um sem que entre, cumprimente o livreiro e de uma rápida olhada nos títulos disponíveis nas prateleiras. Faço isso há anos. Quando entro num Sebo, procuro mais do que um bom livro. Procuro um livro que me surpreenda. Com o tempo, basta alguns minutos no lugar para saber se o Sebo é bom ou não. Uns minutos, às vezes, rendem manhãs e tardes inteiras de pura investigação. Claro, esta é uma avaliação subjetiva. Por exemplo, fico mais à vontade quando o livreiro responde ao cumprimento, dá orientações sobre a organização do local e ao ouvir o nome do livro ou do autor ou do assunto que procuro, ele não só adianta informações como tece seus próprios comentários a respeito do livro, independente de comprá-lo ou não. Enfim, raro em casa são os livros novos, comprados em livrarias ou ganhados de presente.
Dia desses, entrei num Sebo no centro de São Paulo disposto a sair de lá recompensado. Depois de investigar muito, achei, preso entre a prateleira e a parede, o Poesias Completas de João Cabral de Melo Neto, 4º edicão, Editora José Olympio, 1986. Capa do Ziraldo. O livro não é raro nem nada, mas é uma jóia! Único exemplar cujo primeiro leitor teve o cuidado de anexar recortes de notícias de jornais de época sobre o autor. Os recortes estão amarelados, assim como as páginas onde eles foram deixados.
Uma das notícias, incompleta, é assim:
"'Poetry' (Poesia): 'Eu também não gosto muito dela: há coisas mais importantes que toda essa charanga...' Augusto de Campos publicou, na página Invenção do extinto jornal 'Correio Paulistano', em 1960, tradução do poema 'The Fish' (O Peixe): 'Nad-/ando em negro jade./Conchas azul-marinhas uma/ só/sobre montes de pó...'. Décio Pignatari, em seu artigo 'Sobre poesia oral e poesia escrita' (1950), lia, nas estrofes finais de 'The Fish' 'a tipografia compondoo desenho caprichoso dos meandros que o peixe deixa na água'. Mas foi o poeta João Cabral de Melo Neto quem estabeleceu vínculos mais profundos com a autora de 'The Complete Prose': é inegável e visível a influência da poesia do autor de 'Educação pela Pedra'. João Cabral não nega a influênciae registra a admiração num de seus poemas do livro 'Serial': 'Manianne Moore, em vez de lápis,/ emprega quando escreve/ instrumento cortante:/ bisturi, simples canivete..." ('O Sim contra o Sim', 1961).
Finalmente, Sebastião Uchoa Leite, em livro já mecionado neste texto, publicou tradução, com ensaio interpretativo, do poema 'Tom Fool em Jamaica': 'Lembrem-se de Jonas, embarcando em Joppa, detido pela baleia...' Uchoa Leite, em observação correta, vê tanto em João Cabral quanto em Marianne Moore um louvor comum do esforço, a moral da atividade contra a passividade, regendo o fazer poético.
'A arte da poesia é uma arte de formas singulares' dizia Miss Moore, em uma de suas muitas afirmações. Aliás, Marianne não tinha medo de afirmações. Pode-se dizer que sua proza crítica é também uma arte de formas singulares, inusuais. Nela o novo, combinado com a erudição, a obsessão pelo rigor , a sondagem e recepção de fatos literários inovadores encontram abrigo inteligente, vivo-cheio de riscos." - Folha de S. Paulo, abril de 1988.
Surge, adiante, a segunda notícia, também incompleta.
[João Cabral de Melo Neto] "O sentido de 'Duas Águas' [reunião de livros do autor] é isso: um tipo de poesia de extensão da cultura que era 'Morte e Vida Severina', que pensava que aquilo podia ser entendido pelo homem do Nordeste e tudo, ao contrário era entendido pelo intelectual sofisticado do Rio. Eu me lembro que quando saiu 'Duas Águas', o Vinicius de Morais veio comentar comigo, estusiasmado com 'Morte e Vida Severina'. Eu disse: 'Vinicius, 'Morte e Vida Severina' eu não escrevi para você não; para você escrevi 'Uma faca só lâmina'. 'Morte e Vida Severina' escrevi para o analfabeto do Nordeste...". Abril de 1987.
Verificando outros títulos em casa, encontrei dedicatórias, autógrafos, fotos, cartas, traduções, correções de texto, desenhos, marca-páginas etc. Livros que continuam me surpreendendo.

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