domingo, 25 de novembro de 2012

Religião não pode rimar com discriminação



Aderir a alguma religião é um direito individual garantido pela liberdade religiosa. Não sofrer nenhum tipo de discriminação, inclusive por valores religiosos, é um direito inviolável e coletivo o qual devemos preservar em qualquer lugar


Nunca fui ligado a nenhuma religião. Quando criança, fui matriculado num desses cursos de catecismo oferecido pela igreja católica do bairro em que eu morava, na Vila Mathias, na cidade de Santos, no litoral de São Paulo.


Eu já conhecia bem o interior daquela igreja. Umas das brincadeiras da qual eu participava era disputar com os amigos quem apagava mais vela acesa no local. A igreja dava uma velinha para quem não podia trazer a sua para acender. E tinha também um filtro de barro com água benta para quem quisesse beber. Pura caridade. E tinha mais. Difícil mesmo era pegar alguma nota da caixa de doação dos fiéis. Tinha que ser ligeiro. A mão pequena passava pela brecha, mas a caixa tinha um fundo bem maior e só perto do Natal ela ficava um pouco mais cheia e dava para alcançar alguma nota que ficava boiando ali por cima. Quando isso acontecia, o doce estava garantido. Moeda nem pensar, elas eram mais pesadas e ficavam no fundo da caixa quando não ajudavam a empurrar ainda mais as notas para baixo.


O bairro Vila Mathias era um famoso aglomerado de cortiços da cidade. Eram até 10 famílias morando em antigos casarões explorados por intermediários dos proprietários que cobravam aluguéis por cada cômodo habitado. Tinha confusão quase todos os dias, por qualquer coisa. A wez de usar o banheiro, usar o tanque para lavar louça e roupa, usar o varal, o quintal, o corredor, limpar os espaços comum aos moradores, abrir ou fechar a porta, intrigas, fofocas, separar as brigas das crianças, dos adultos. Vire e mexe a polícia baixava num e o caldo entornava. Saia todo mundo para ver o que estava acontecendo. Uma gritasia só e lá se ia resolver tudo na delegacia.


Naquela época- era um sacrifício deixar passar uma tarde de sábado na rua para ficar numa antiga sala sem graça no fundo da igreja onde aconteciam as aulas de catecismo. Sacrifício compensado só pela paixão que eu nutria pela professora. Eu uma pobre criança branca e ela uma jovem negra que ia toda arrumada para ministrar a aula de catecismo e depois caia no baile que acontecia num dos clubes da cidade. Ela mesma avisava. Nunca fui bom de dança, mas sempre tive muita curiosidade para entrar nesses clubes para ver como é que era. Do lado de fora eu ouvia o som batendo nos falantes e ficava imaginando outro mundo lá dentro. Não deu. Quando tive idade permitida para entrar, a música que tocava - a minha e a dos clubes - eram outras. Os clubes fecharam, não fui mais as aulas e nunca mais vi a professora de catecismo. Lembro-me dela, mas não das aulas. Nunca mais quis saber de catecismo ou qualquer coisa parecida.


Eu não ligava para religião alguma, me preocupava mesmo era a discriminação que corria solta. Tudo que uma criança não!quer é ser discriminada, muito menos na escola. Pode ser o fim para ela. Lembro de ter ouvido a expressão “macaco branco” usada por alguns adultos e reproduzidas por algumas crianças. Na época, eu sabia que era uma provocação, mas não entedia o seu peso discriminatório. E se podia eu partia para cima de quem a dissesse ou devolvia um!palavrão. “Macaco branco” era uma expressão discriminatória racista para apontas as crianças pobres brancas que moravam nos cortiços. Os mesmos adultos e crianças usavam também a expressão racista “macaco” para apontar crianças negras que também moravam ou não nos cortiços.


No bairro que eu morava não me lembro da presença de nenhuma igreja evangélica, pelo menos não como é hoje nos bairros. Mas lembro de algumas mães sempre de saia e cabelos bem compridos e alguns homens com a bíblia velha de capa preta na mão, lembrando muito os ewangélicos que vejo hoje. Eram conhecidos no bairro os centros espíritas, principalmente por seus programas assistenciais. Perto da casa que eu morava tinha centros de umbanda e candomblé. Estes faziam a alegria da criançada da rua porque sempre saíamos de lá com doces nas mãos. Nenhuma mãe nunca reclamou de ver seus filhos com balas, pipocas e pirulitos. Pelo contrário. Também não reclamavam porque ficávamos até tarde na rua indo de praça em praça a procura de doces oferecidos a Cosme e Damião. Também não me lembro de ninguém ter sido impedido de distribuir doces na rua ou qualquer problema parecido.  Tinha também as casas das velhas benzedeiras, às vezes esperava horas por um passe ou preparo de uma garrafada. Enfim, se havia problemas de crenças religiosas, estes problemas eram dos adultos, e não das crianças. Embora a responsabilidade dos adultos sempre influenciasse as crianças. Problema meu é que não era certamente!
 
Os tempos mudaram – e continuam mudando, inevitavelmente. Os problemas das crianças são cada vez mais parecidos com os problemas dos adultos. Um deles é a discriminação baseada em valores professados por crenças religiosas com hegemonia no país. A história já está cheia de capítulos que contam tristes conseqüências para povos inteiros por conta de questionáveis valores religiosos universais. O Brasil certamente contribuiu com alguns destes capítulos. Aderir a alguma religião é um direito individual garantido pela liberdade religiosa. Agora, não sofrer nenhum tipo de discriminação, inclusive por valores religiosos, é um direito inviolável e coletivo o qual devemos preservar em qualquer lugar. Assim, faremos um bem à comunidade e principalmente às crianças que poderão crescer sem levar consigo as marcas perversas da discriminação. 

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