quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Centenário promove a obra da escritora Carolina Maria de Jesus em SP

Por Juca Guimarães 
juca.guimaraes@diariosp.com.br


Assistaí! | Centenários Carolina de Jesus e Abdias Nascimento

Nesta quarta, dia 22, acontece mais uma rodada do ciclo de palestras e manifestações culturais para a comemoração do centenário da escritora Carolina Maria de Jesus. O evento acontece na Biblioteca Municipal Mario de Andrade, na rua da Consolação, 94, perto da estação Anhangabaú do Metrô, a partir das 19h, com entrada franca. Confira a programação completa: www.edicoestoro.net

O tema da vez é "Carolina de Jesus, letra que arranha, espeta e fertiliza. Os escritores Mário Silva, Jarid Arraes e Marciano Ventura participam do ciclo de debates com leitura de texto. 

Carolina foi precursora da literatura marginal e revolucionou o mercado literário nos anos 60 com a obra "Quarto de Despejo", traduzida para 14 idiomas, sobre o cotidiano de uma favela no bairro do Canindé, na Zona Norte de São Paulo. Além de outros livros, poesias e letras de músicas. Confira a entrevista com Ruivo Lopes e Allan da Rosa, curadores da mostra.

- Como surgiu a ideia de celebrar o centenário da escritora Carolina de Jesus?
Ruivo Lopes: Surgiu pela constatação da necessidade de ressaltar a grandeza e a complexidade de sua obra literária, e tambem a de Abdias Nascimento, cujo centenário celebraremos em novembro, mas também fazendo uso de outras linguagens e abordagens como filmes, intervenções cênicas, leituras, recitais, debates e oficinas. Estes nossos autores da veia ancestrais e enormes referencias são ainda no geral muito mais comentados do que lidos e, mesmo assim, menos comentados e conhecidos do que merecem e merecemos.

 
Oficina de abertura: “Cartas para Carolina: chão, teto e página", 
com Allan da Rosa, na Ocupação São João

- A realidade da luta por moradia digna em São Paulo mudou muito da década de 60 para cá?
Ruivo Lopes: Permanecem cenários de exclusão semelhantes, porém mudados com a lógica diferente operada pelo capital dos anos oitenta pra cá. Carolina começa seus diários ainda nos anos cinquenta e seus registros são o contraponto ao chamado desenvolvimento então na moda. O país deixou de ser rural e passou a ser urbano. a população brasileira mais que triplicou e mesmo assim o país ainda carece a vera de reformas agrária e urbana. as migrações para a cidade mudaram, diminuíram, e o que antes era tolerado, por exemplo, por sua necessária mão de obra a ser explorada, hoje, depois da automação, terceirização e outros fatores, passa a ser quase totalmente indesejável. as periferias da cidade explodiram e já tem cada vez menos condições de oferecer moradia digna.  Temos centenas de prédios abandonados, vazios, devedores de impostos na área central, que tem grande oferta de equipamentos e possibilidades de econômicas, culturais e sociais.

- Quais são as reivindicações do movimentos de luta por moradia?
Ruivo Lopes:A luta  também é por melhorias nos campos do transporte e da saúde pública, principalmente nas periferias, o acesso a bens educacionais, qualificando moradia como algo que é muito mais do que residencia. neste sentido, carolina já era protagonista na luta contra a favelização da população negra e pobre ao revelar nos seus diários as agruras de viver numa favela. não é a toa que as mulheres, mães, negras, migrantes e pobres, são a maioria nos movimentos de luta por moradia. todas elas carolinas!

Roda de sambas de Carolina de Jesus e sambas paulistas.
Com Camilla Trindade & Samba Wetu Ukweli Wetu

- Na literatura da Carolina, há muitos relatos de conflitos entre vizinhos. Atualmente, os movimentos sociais conseguiram avançar na organização e comprometimento da população sem moradia?
Allan da Rosa: As contradições de ser humano e de viver em comunidade e sociedade sempre aconteceram e continuarão acontecendo. a literatura inclusive já se ocupou bastante desse tema. os movimentos sociais lidam diretamente com essa demonização das lutas sociais (como de alguns aspectos da cultura popular e negra, como por exemplo o candomblé), com a cultura do medo e da velocidade (que surge como valor), com o individualismo, etc. mas as necessidades pessoais e coletivas e a gravidade da situação que assola e aflige a maioria absoluta, para além do acesso efêmero e por vezes ilusório aos cintilantes bens de consumo e do fato de alguns conseguirem pagar por (ainda ruins) serviços privados de saúde, educação e transporte, influenciam sim nesta questão. Mas não nos enganemos, conflitos entre vizinhos são as maiores reclamações nos condomínios mais chiques, cada vez mais isolados, blindados, cercados, ilhados e exclusivos. Por outro lado, na literatura de Carolina de Jesus, tambem por isso fascinante e comovente, os conflitos surgem crus, tanto quanto os atos de solidariedade. a solidão, o desepero e as tretas que encontram em sua caneta, os devaneios, a simplicidade do bem viver, a ironia, a sátira desbragada e os sonhos suaves. e essas esferas de ser humano prevalecem. será que um dia terão fim?

- Qual é o legado que os livros da Carolina deixa para os leitores de hoje?
Allan da Rosa: O lugar, o olhar, a fala e a escrita da carolina são atuais e cortantes. Carolina não só aborda temas, ela os vivencias intensamente e ainda assim escreve dolorosamente, mas sem perder a poesia. Se estivesse viva, Carolina não pouparia ninguém graúdo e poderoso, iriam todos parar no seu diário com as piores referências porque ainda latejam a luta por moradia e creches, contra o racismo institucional, a violência da discriminação religiosa, a repressão policial aos pobres e o genocídio sistemático da população negra. neste sentido, Carolina é puro revide!

Encontro "Na alvenaria sambando a Bitita: Carolina além de 'Quarto de Despejo'", 
da esquerda para a direita: Fernanda Miranda, Flavia Rios e Lucélia Sérgio

A programação do centenário é bastante diversificada. Tem muitas atrações e diferentes formas de expressão. A ideia é manter a comemoração permanente para os próximos anos?
Allan da Rosa: A ideia é que se levante e alumeie a memória dessas nossas grandes referencias. que sejam considerados pelo conjunto de suas obras, para além de idealizações e estereótipos. e que principalmente não sejam lembrados apenas em seus centenários. não precisamos esperar mais cem anos para reverenciar Carolina e Abdias. Nos últimos anos, por exemplo, as obras de ambos foram campo de sensibilidade e reflexão em muitos de nossos trabalhos em educação popular, em textos de ficção, ensaios e dramaturgias, e em programas de rádio. também há a vontade de que outros percursos possam acontecer na biblioteca Mario de Andrade, lugar de singular importância não só na mais principalmente da cidade, e também com nossa proposta de extensão e envolvimento da biblioteca com outros terreiros imprescindíveis, em seu entorno. recordo que há outras escritoras, ancestrais e contemporâneas, que merecem ser contempladas no desfrute e questionamento de suas obras e caminhadas, indo além do esquecimento ou de meras análises de contexto. o desejo é que possamos realizar mais rodas de diálogos, trazer outros ciclos de formação à casa e à cidade e a gente torce pra não esperar um ano pra que isso seja feito.

Publicado originalmente em: Diário de São Paulo.

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