domingo, 9 de junho de 2013

Funk: Cultura e Arte X preconceito e criminalização





Mas não me bate doutor
Porque eu sou de batalha
Eu acho que o senhor tá cometendo uma falha (...)

(...)
E se um mar de rosas virá um mar de sangue
Você pode ter certeza, vão botar a culpa no funk

trechos de Não me bate doutor, de Cidinho e Doca


O jornal O Globo, do dia 25 de maio, destacou a chegada do funk na classe média carioca. O óbvio é que a novidade apresenta o que já se sabia desde o tempo em que o samba do morro virou bossa nova no calçadão de Ipanema. Vale destacar que no jornal, a reportagem esta abrigada no caderno Rio!

A frase que inicia a reportagem é lapidar: "O batidão foi descendo, descendo, até chegar, hoje, ao chão dos melhores endereços da cidade". Nota-se que este "melhores" aí, sugere uma oposição aos endereços de origem dos MCs destacados na reportagem. 

As jornalistas que assinam a reportagem foram generosas e fizeram o favor de deixar tudo muito bem explicadinho pros leitores da zona sul compreender como funciona o funk, nascido e criado nos morros, favelas e periferias cariocas. Até então parecia muito fácil discriminá-lo e, sobretudo, criminalizá-lo em reportagens policialescas, mas descobriram que não é bem assim. Pelo menos quando convém. Na matéria, elas revelam que o funk abriga, incorpora e dialoga com outros estilos e fontes musicais, sempre acompanhados por coreografias próprias, complexas que não deixam nada a dever pro que é ensinado em qualquer escola de dança "dos melhores endereços da cidade". O funk é sofisticado, na fusão, não perde a raiz, na coreografia, canta o corpo. As afirmações aqui ficam por minha conta.

Assim, patricinhos e patricinhas recem-iniciados no ritmo do momento não vão fazer feio no salão quando estiverem embalados pelo pancadão numa boate do lado sul do mapa carioca. Enquanto seus pais estiverem tranqüilos, encastelados num condomínio fechado ou jantando num restaurante famoso localizados nos "melhores endereços da cidade", seus filhos estarão embalados no que a reportagem chama de batidão, pancadão light, ou versão "família". 

O Globo, é claro, não dá ponto sem nó e puxa pra si parte da responsabilidade pela classe média carioca se encantar com o funk. E reinvidica seus pontos na história. Na reportagem são citados programas da própria emissora em que MCs já se apresentaram e sucessos emplacados em trilha sonora de novelas. 

Artistas que tem em comum os morros, favelas e periferias cariocas como berço e devotam todo seu aprendizado a sua origem, conquistaram o público em suas comunidades e, principalmente, na internet onde seus clipes são assistidos por milhares de pessoas. Artistas que vieram de uma produção totalmente independente e agora colhem cachês polpudos recebidos em maratonas de apresentações que realizam por noite. 

São jovens de origem pobre, todos negros na sua maioria - só pra lembrar! -, que estão dando certo, trabalham duro, começaram a ganhar muito dinheiro, sustentam suas famílias e consomem nas mesmas lojas exclusivas da classe media, localizadas também nos "melhores endereços da cidade". 

A primeira vista, a reportagem tenta apresentar um tom conciliador bem característico das interpretações que as elites sempre fizeram dos conflitos sociais que ainda hoje marcam a sociedade brasileira. Um tom de integração, através da Arte. Talvez um desejo de O Globo imprimir pra seus leitores um rosto pra chamada nova classe média. Talvez um retoque na vitrine de vidro na qual fica em exposição ao mundo os brasis divididos em “piores” e “melhores endereços da cidade” carioca. Brasis dos quais as elites esperam sempre que apenas um lado seja "bem comportado". Não é a toa que a frase que inicia a matéria é construída num discurso de oposição velada. Aquele batidão, apelido pro "funk light", não é o pancadão, associado sempre a "apologia às drogas, às armas e ao tráfico", como a própria reportagem sugere e lá mesmo no texto  arrisca já ser coisa do passado. 

O caminho esconde a paisagem. A descida pro chão dos “melhores endereços da cidade” é a dos morros, favelas e periferias. Caminhos trilhados por jovens funkeiros e funkeiras que estão fazendo a vida na cidade maravilhosa as custas da sua Arte. Jovens que estão entrando pra outras estatísticas que não a do Mapa da Violência. E isso parece incomodar a classe média tradicional, digamos assim. Por mais que aparente pacificador, expressão de guerra importado pelas elites políticas cariocas e que estampa também as páginas de O Globo, o Rio de Janeiro continua sendo a velha cidade partida de sempre.

 Assista aqui o Rap da felicidade, de Mc Cidinho e Doca

Se não é O Globo, são os leitores nos comentários da reportagem que rompem com qualquer possibilidade de cordialidade, outra marca das elites brasileiras. Alguns comentários lembram que apesar de tudo, o pobre, mesmo com dinheiro, ainda tem seu lugar.

Em meio a centenas de comentários de leitores de O Globo, exibidos logo em seguida da reportagem, não foi difícil selecionar alguns deles que demonstram o quanto há de racismo, discriminação, preconceito, hostilidade e ódio nas elites mesmo quando o assunto parece tratar apenas de Cultura e Arte, esse campo minado coberto de flores.

Lá vai:

Música de bandidos feita para bandidos. Não me surpreende que gente de morro goste disso. A casa da minha mãe na Tijuca ficava perto de favela e é um suplício morar perto da escória, LC.


Triste notícia! Quase dez milhões de clic´s com mentalidade favelizada (...).  Viva a impunidade (...), V.


Assim como a imprensa local faz com as favelas, tentando convencer as pessoas que é um lugar igual aos outros (...), tentam desesperadamente convencer que o funk faz parte da cultura carioca. Não adianta, a esmagadora maioria das pessoas não se sentem representadas pelo funk, não diz respeito ao estilo de vida das pessoas que não vivem a realidade das favelas. Não é porque alguns adolescentes da zona sul estão gostando que isso quer dizer que foi aceito, RA.


Vamos combinar que funk é coisa de gente...porca, CA.


Não vou criticar esta baixaria para não dar IBOPE a estes coitados, RC.


Classe média era eu, essa gente é, e sempre será, classe baixa. A classe média tem horror a funk e não deixa suas crianças perderem o senso crítico disso. Estas moças da foto não são em nada diferentes de bailarinas de prostíbulos. E os rapazes, filhos de mães assim. Além de pena me dão nojo, BC.


Para quem já teve a bossa nova como referência, isso soa mais como uma tribo de indígenas, JM.


Daqui um pouco pagaremos o "Bolsa Funk", WVDT.


Funk carioca é lixo. Não é cultura. Não adianta, Globo, vocês não vão conseguir empurrar goela abaixo esta porcaria na população pensante e de classe média. Não adianta ,Globo, a sociedade pensante do Rio não assiste a "Ixquenta " e não ouve Funk. Não adianta insistir. Nós ainda pensamos e temos bom gosto. Favor não insisttir com lixo de funk. Nossa mente não é favelada. Grato, F.


Lixo, esgoto cultural da pior qualidade, C.


Não é a classe média tradicional, e sim a nova classe média que adora esse tipo de porcaria barulhenta e sem conteúdo, FR.


O Congo fica no Rio de Janeiro.... (...) Não obstante o funk ser um ritmo originalmente criado pelos "niggers" americanos na década de 60 por James Brown, a versão tupiniquim copiada pelos M.A.C.AC.O.S. de imitação dos favelados do Rio é um verdadeiro de circo de aberrações hilariantes, EC.


A influência negra na música já foi mais aproveitável, hj se resume a drogas e pornografia - seja aqui ou seja nos EUA, C.


Serei curto e grosso: pesquisem se européias e americanas gostam de funk principalmente o tal pancadão...elas tem cérebro...Aliás, não só as mulheres, os homens também. Já no Brasil, MTAP.


Muito triste essa noticia!com esses favelados ganhando dinheiro, vai aumentar muito o consumo de cocaina!, MM.


Funck - carioca - é cultura? Cultura de verdade tem relação com a Arte, que desperta o melhor do ser humano. Mesmo o rock pesado nos estimulava a uma mudança de entendimento do mundo com objetivo de muda-lo. Os valores do funck - carioca - vão de incitação a violência, ao rebaixamento da mulher e a vida em comunidades pobres como opção de vida e não como necessidade. Cultura liberta, educa e conscientiza. É por isso que essas comunidades são onde mais se elegem os políticos corruptos, AC.


Assista aqui Som de preto, de Amilcka e Chocolate

Deixo aqui um alerta, a visão crítica do mundo que nos cerca é necessária. Nenhuma estrutura, seja ela física ou mental, deve parecer impossível de ser transformada. Cultura e Arte, quando irmanadas, são fundamentais pra reflexão sobre tantas questões individuais e coletivas que cercam cada um de nós. Entendo que Cultura e Arte estão umbilicalmente ligadas a busca incessante por Justiça. É um campo minado porque Cultura, Arte e Justiça estão em constante disputa numa sociedade desigual como a brasileira. Quando você for fazer alguma crítica do funk, assegure-se de qual lado do campo minado da Cultura e da Arte ela esta lançando você. Reflita, porque amanhã o alvo das injustiças poderá ser você.

Nenhum comentário: