segunda-feira, 27 de maio de 2013

Exclusão na Literatura Brasileira: quando a ficção é o retrato da realidade


A matéria abaixo foi publicada na revista digital NIMBUS, editada por alunos do curso de jornalismo da UFSM (Universidade Federal de Santa Maria), no Rio Grande do Sul, e, tendo como base a pesquisa da professora Regina Dalcastagnè, da UNB, sobre a exclusão social na produção literária brasileira contemporânea, aborda outras fontes onde sujeitos literários que habitam nas margens e personagens excluídos e indesejáveis escrevem e fazem suas próprias histórias.




Os protagonistas esquecidos
Por Dairan Paul, Guilherme Porto e Vitor Dornelles

“Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou, que nem uma macaca de carvão”, escreve Lobato. Jeca Tatu e a debilidade do camponês atrasado seriam a cara e a fuça do preconceito, se ele tivesse uma. Lima Barreto, relegado à sarjeta pela Academia Brasileira de Letras, toma mais um gole de cachaça para canonizar de vez as frustrações. Enquanto isso, o túmulo de Machado de Assis treme a cada tentativa de branqueamento do maior autor de nosso país.

Não é de se surpreender: a pesquisa realizada por Regina Dalcastagnè, professora da Universidade de Brasília, indica que a literatura brasileira é um campo predominantemente dominado por autores homens e brancos. Os resultados estão no livro “Literatura brasileira contemporânea“, lançado pela Editora Horizonte em 2012.

O recorte da pesquisa de Regina abrange 258 romances brasileiros publicados entre 1990 e 2004 por três das maiores editoras do país: Companhia das Letras, Rocco e Record. Dentre os dados levantados pela professora, estão que 72,7% dos romances foram escritos por homens e 93,9% por brancos. A representação dos negros, na ficção, se dá em sua maioria como bandidos; as mulheres, como donas de casa ou prostitutas; e o homem branco, como artista ou jornalista.

Regina acredita que os dados da pesquisa não seriam muito diferentes se realizados com outras editoras. “Também temos números semelhantes aos que obtivemos em relação à autoria dos romances na telenovela, no jornalismo, na câmara dos deputados… Os espaços de produção de discurso ainda são, predominantemente, domínio de homens brancos de classe média. O que implica em predominância de uma determinada perspectiva social, e que vai dar, muito frequentemente, em uma construção discursiva semelhante a respeito do outro.” Atualmente, a professora dá continuidade à pesquisa, agora analisando os romances publicados no período de 2005 a 2014. Os dados parciais, por enquanto, não diferem muito das pesquisas anteriores.


A história e a sina do romance brasileiro

Segundo Érica Peçanha – antropóloga e escritora do livro “Vozes marginais na literatura” (Aeroplano, 2009), resultado de sua dissertação de mestrado -, a literatura é uma construção catalisadora de emoções, conhecimento, valores e mensagens políticas. Ao mesmo tempo em que ela pode divertir e entreter, também informa e amplia a capacidade crítica do seu leitor. “Literatura é sempre uma representação que interpreta e organiza aspectos da realidade, em termos estéticos. Como produção artística, carrega consigo marcas históricas, convenções e construções sociais”.

Ora, se a literatura traz determinados aspectos de seus autores, a representação de negros e mulheres na pesquisa de Regina não surpreende tanto, dado que estamos inseridos em uma sociedade brasileira ainda racista e machista. Érica cita o sociólogo francês Pierre Bourdieu para explicar que escritores, quando se lançam ao campo literário, estão orientados pelas ideologias e práticas de suas classes sociais. Dar voz ou silenciar certas camadas da sociedade seriam aspectos intrínsecos à própria produção literária.

Éle Semog (pseudônimo de Luiz Carlos Amaral Gomes, poeta, militante do movimento negro e atual Secretário Executivo do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas) considera complexo para a maioria dos escritores brancos brasileiros construírem subjetividades e humanidades nas personagens negras. “É a história e a sina do romance brasileiro”, lamenta o poeta. No entanto, Semog encontra na literatura afro-brasileira personagens – homens e mulheres negros – que ocupam outros lugares. “A literatura negra brasileira, a partir de fins dos anos de 1970, se estabelece com o propósito ideológico de dar outro destino aos personagens negros, homens, mulheres, crianças e idosos, e, principalmente, combater o racismo no Brasil”.

A literatura não é a principal responsável pela discriminação e preconceito de determinados grupos e também não deve ser entendida como a ferramenta que transformará essa situação, escreve Regina Dalcastagnè. Isso não exclui a responsabilidade social que há por trás dela. Entendida como um discurso, a narrativa ficcional pode tanto reforçar preconceitos como questioná-los e abordar novos modos de pensar nossas relações com o outro.


Preconceito em forma de ficção

Um dos casos emblemáticos de preconceito na literatura brasileira é a polêmica em torno da obra de Monteiro Lobato. O autor foi acusado de racismo nos textos “As Caçadas de Pedrinho” e “Negrinha”, além de simpatizar com as ideias da Ku-Klux-Klan e da eugenia, base do pensamento nazista. Éle Semog não considera a discussão nem mesmo um “caso”, mas um “desastre”.

É comum argumentar que ler Lobato não torna a pessoa racista. “Mais notável ainda, todos eles [os leitores de Lobato] declaram com absoluta certeza não terem se tornado racistas, num país em que mais de 90% da população reconhece a existência do racismo (ao mesmo tempo em que, claro, mais de 90% declara não ter nenhum preconceito racial)”, explica Idelber Avelar.

Idelber é professor titular de Literaturas Latino-Americanas e Teoria Literária na Universidade Tulane, em New Orleans. Sobre o racismo na literatura, ainda comenta: “O brasileiro branco se acha uma ilha de tolerância cercada de racismo por todos os lados, mas basta colocar em pauta um caso óbvio para que o negacionismo se veja de forma nítida, em geral com um furor que recorre a termos como ‘censura’ antes sequer que se coloque em pauta o problema de se indicar ou não livros de um racista como ele a crianças de nove ou dez anos de idade, na escola pública. O caso Lobato é uma grande lição sobre os mecanismos através dos quais opera o negacionismo no Brasil.”

Mesmo os cânones literários não escaparam de sofrer preconceito. Se chamar Machado de Assis de mulato em 1908 causava espanto, que dirá, 103 anos depois, o branqueamento do autor em um comercial da Caixa Econômica Federal? Da mesma forma, também o caso de Lima Barreto, recusado na Academia Brasileira de Letras – além de utilizar um português mais coloquial em seus textos, fugindo aos padrões da época, era pobre, negro e alcoólatra. Barreto se junta a Carolina Maria de Jesus, autora negra, e João Antônio, escritor que retratava os protagonistas das periferias brasileiras. O trio de autores desajustados pode ser considerado como o precursor do movimento da literatura marginal.


À margem da estética

Se Lima Barreto não conseguiu entrar na Academia Brasileira de Letras no começo do século XX, as possibilidades atuais não seriam muito mais animadoras. Para o professor Fernando Villarraga do curso de Letras da UFSM, o fenômeno da literatura marginal-periférica é tanto reconhecido, como ignorado, em determinados setores. São raros os currículos que incluem disciplinas para discutir o tema dentro da universidade. “A questão concreta é que ela está aí, está viva e está funcionando, e tem um tipo de produção e circulação por canais que nem sempre o mundo acadêmico gosta de olhar sem preconceito”. Além de Ferréz, articulador e ideólogo do movimento, há poucos autores estudados no contexto acadêmico.

Tanto Érica Peçanha quanto o poeta Nelson Maca reconhecem que as atenções para a literatura marginal-periférica se dão muito mais nos âmbitos sociopolíticos do seu surgimento do que na reflexão crítica sobre os fenômenos estéticos que envolvem a corrente. O que diferenciaria, por exemplo, os textos de Rubem Fonseca, sobre a periferia, e os de Ferréz? Nas palavras de Idelber Avelar, as respostas vão desde os processos de produção, circulação e consumo destas obras até o pacto de comunidades interpretativas sobre o que é legitimamente estético ou não. Para além disso, deve-se levar em conta ainda a ideologia que cerca seus personagens, como observa Regina Dalcastagnè: “há um indisfarçável ponto de vista da elite nos contos do primeiro [Rubem Fonseca], mesmo quando narrados por marginais, o que permite uma identificação mais fácil do leitor de classe média, enquanto o segundo [Ferréz] traz justamente uma crítica a esse olhar, desestabilizando-o ao se colocar ao seu lado como outra perspectiva possível.” Não à toa, boa parte da literatura marginal-periférica possui caráter autobiográfico.

Mesmo nos cânones literários, a função estética também pode se perder. Segundo Regina, não é apenas a função social da literatura que deixa de existir quando exclui grupos, mas a própria reiteração de estereótipos de negros e mulheres, por exemplo, torna o conjunto empobrecido. Se a literatura marginal-periférica tende a tornar sujeitos segregados como donos de seus discursos e dar visibilidade a novos olhares sobre a periferia, então o fenômeno merece atenção, especialmente nas novas discussões que pode trazer para dentro do campo literário. Viver do passado – em busca de um novo Machado de Assis, preferencialmente mais branco – é renegar os novos Limas Barretos, não somente dentro da Academia, mas também do debate literário. Procurar novas Clarices ou Guimarães não faz sentido, já que o conceito de valor literário trabalhado pelas comunidades interpretativas, como explica Idelber, foi estabelecido pela própria Lispector, pelo próprio Rosa. Por ora, a busca de velhos cânones para resguardar a “alta” literatura bate de frente com o crescimento dos atentados poéticos da periferia – queira ou não a Academia. 

A primeira parte da matéria foi publicada originalmente no sítio da revista digital  Nimbus.


Eles também serão eternizados
O boom da expressão “literatura marginal” ocorreu após três edições especiais da revista Caros Amigos sobre o tema. Publicados em 2001, 2002 e 2004, os suplementos apresentaram 48 autores à margem do campo social e literário. No manifesto de abertura escrito por Ferréz, o recado é direto: “(…) estamos na área, e já somos vários, e estamos lutando pelo espaço para que no futuro os autores do gueto sejam também lembrados e eternizados”.

Literatura marginal, subalterna*, periférica. Os conceitos são diversos, mas compreendem a gama de personagens à margem da sociedade, escrevendo sobre si ou não. Nelson Maca, poeta, professor de literatura da Universidade Católica de Salvador (UCSal) e articulador do coletivo Blackitude Hip-Hop, sugere ainda outro termo: literatura divergente. “Quando defendo este conceito, estou realmente pensando em territórios segundo nos orienta o geógrafo Milton Santos. E, se falo em manifestações literárias distintas de territórios distintos, isso só pode acontecer num ambiente cultural onde a diversidade seja respeitada e incentivada. Dentro de nossa sociedade, equivale a dizer libertária!”. Em seu Manifesto, Maca explica que a divergência é em relação à “monocentralidade”, que estipula um centro e uma periferia. Ao desviar de um cânone, uma central universal, os autores se reagrupariam – de acordo com suas naturezas comuns, sejam elas raça, classe, gênero – em um novo processo, de convergência.

Ruivo Lopes, ativista cultural, também entende a literatura marginal-periférica como a quebra da ideia de cânone e do “injusto latifúndio editorial” que ainda persiste no Brasil. “A literatura é um produto cultural ainda muito valioso no Brasil. Veja as listas dos mais lidos, as resenhas e anúncios literários na imprensa dominante, as entrevistas com escritores em programas de televisão, as vitrines das grandes redes de livrarias que ditam o que você vai ler. Tá tudo dominado! Essa é uma realidade e não convém falseá-la”. Lopes cita iniciativas editoriais à margem do mercado, como a Edições Toró, hoje referência da literatura da periferia. Programas como A Beira da Palavra, transmitido pela Rádio USP e produzido pelo escritor Allan da Rosa, também trazem novos autores ao público.

O crescimento dessas produções é o aspecto que mais impressionou a antropóloga Érica Peçanha, quando começou a se interessar pela literatura marginal-periférica. Há cada vez mais publicações de livros, bem como a elaboração de editais públicos específicos para artistas e ativistas moradores de periferias e favelas. O papel central dos saraus também auxilia na multiplicação de novos autores.


No céu, a poesia

Originalmente ligadas aos românticos europeus, os saraus eram tidos como uma válvula de escape à racionalidade capitalista e à criação convertida em mercadoria. No Brasil, decaíram após o período modernista. O seu resgate, nas comunidades periféricas, busca trazer a palavra como potencialidade sensibilizadora. Para uma sociedade em que o sentido predominante é o da visão, a volta dos saraus soa desafiadora. Outro sentido dado à retomada é provocar a supervalorização da cultura escrita. Para Ruivo Lopes, a oralidade ainda é subestimada**.

Lopes comenta que os saraus acolhem pessoas que não tem como lançar suas obras nos espaços literários tradicionais. “Se não fosse eles, muita gente ainda teria seus livros guardados depois de lançados”. As publicações acontecem em antologias literárias dos próprios saraus.

O ativista explica o papel que as práticas têm de funcionar como “bibliotecas comunitárias vivas”, ajudando na formação de novos poetas, escritores e escritoras, e estimulando o interesse da comunidade pela participação e apreciação literária. É comum, portanto, que saraus realizem outras atividades além da leitura de textos, como o caso da Cooperifa, que lançou balões pelo céu de São Paulo contendo poemas. Os ataques poéticos idealizados por Sérgio Vaz, um dos grandes nomes da literatura marginal-periférica, contrapõe a ideia de que na periferia só vem bala perdida.

Durante um ano, Ruivo apresentou o Sarau da Ocupa. Acontecia duas vezes ao mês, no espaço comunitário de uma ocupação de moradia, no centro de São Paulo. Através da literatura da periferia, Ruivo organizou atividades educativas para as crianças e adultos da ocupação. Agora, atua no Coletivo Perifatividade, na região do Fundão do Ipiranga, zona sul de São Paulo, e registra em seu blog todas as atividades que faz parte. “Os saraus então por toda a periferia da cidade – na Agenda Cultural da Periferia tem um lista grande. Há saraus em outros estados também. Novos sempre surgem com características e reivindicações próprias, mas sempre inventando um novo jeito de se relacionar e de se afirmar com a literatura, ecoando novas vozes literárias e imprimindo novas caras no cenário literário da periferia pro Brasil, e até pro exterior também”. 

A segunda parte da matéria foi publicada originalmente no sítio da revista digital Nimbus.

* Nota deste blogueiro 1: A Literatura feita a margem também da produção literária dominante e que emerge da periferia tem assumido nomes que lhe confere identidade própria (marginal, periférica, suburbana, divergente, negra), mas nunca "subalterna", ou seja, sob as ordens ou subordinada a quem ou ao que quer que seja.

** Nota deste blogueiro 2: Os saraus também incentivam a leitura, a escrita e a fala da  palavra e do mundo que nos cerca e nos habita. Literatura não é feita só de palavra escrita. A oralidade é a expressão da fala e da palavra escrita, lida e ouvida em linguagem própria, enraizada na memória individual e coletiva, presente no tempo e no mundo. É a cultura dominante da palavra escrita que subestima a oralidade. Como escapou da edição, reafirmo: não é porque não está escrito que a riqueza oral tem menos valor.

Numa outro oportunidade, disponibilizarei neste blog a íntegra da troca de ideia com a revista digital Nimbus. 


Leia também: Literatura como campo de batalha (clique)

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