quarta-feira, 9 de setembro de 2015

"À deriva", um poema náufrago


Barco lotado de pessoas naufraga no Mar Mediterrâneo  


À deriva

Só tenho minha roupa,
crianças e mulher...
escombros em minhas costas
e a terra sob meus pés

Minha família eu entreguei
para um barqueiro oferecido
Meu dinheiro eu deixei
nas mãos de desconhecidos

A bordo de um bote inflável
foi lançado o meu destino
nas águas frias do Mediterrâneo
eis um novo clandestino

Se o mar for generoso
e a chuva cair amena
e ninguém se desesperar
com o choro das crianças,
sedentas e famintas,
e o bote não virar,
quem sabe
nossas vidas
não fique
no Gibraltar

Em meu país
já fui clandestino
Corri de belgas, franceses,
ingleses, espanhóis,
portugueses, estadunidenses

Corri de todos eles

Em minha cidade
já me iludi
com missões de paz,
liberdade e prosperidade
que fomentaram mais guerra

Me iludi com todas elas

Em minha vila
fui impedido de falar
Minha língua foi proibida
por outra ultramar

E agora não querem me escutar

Desejei a Primavera
renovada em Damasco
e amargurei um porvir
que nunca se realizou

Papel nenhum tem valor
quando se esta em alto mar
A lei num bote inflável é sobreviver
e chegar em paz em algum lugar

A noite turva o horizonte
A manhã lembra que ainda estamos vivos
O mar deixa o corpo salgado
e o sol deixa a pele queimada
A maresia é companheira de travessia

- Vão nos resgatar.
Alguém exclama baixinho
Talvez seja uma mãe
abraçada a seu filho,
talvez seja alguém
delirando nalgum canto

Se tivermos sorte
seremos resgatados com vida
já que a dignidade foi perdida
durante a noite... ou era dia?

O que devo dizer
se eu for resgatado?
Ajude-me... Aiutatemi
Eu sou como você... Yo soy como tú
Não sou terrorista... Ich bin kein Terrorist
Amigo... Ami

Um dia corri deles
e agora eles correm de mim
Me pegam com luvas nas mãos
Me tiram do inferno do mar
e me colocam no inferno da terra

Me chamam de clandestino,
sem papel, imigrante,
refugiado, sem destino
Nunca pelo meu nome

Acaso não tenho direito a um nome,
a uma genealogia, a memória
e lugar?

Todas as histórias que ouvi
de guerras e campos de concentração,
tudo o que me contaram os viajantes
sobre vagões lotados, frio e fome
tudo o que aprendi na escola
sobre liberdade, igualdade e fraternidade,
morreram na praia
como Aylan Kurdi

Terei forças para escalar o muro,
fugir dos cães e dos policiais?
Minha pele resistirá ao arame farpado?
Minha família terá a mesma sorte?

Nas estradas, trilhos e montanhas,
se meus pés aguentarem,
para onde me levarão?

Ouvi dizer que alguns foram abandonados
mortos trancados num baú de caminhão
faltou ar num ambiente sufocante
Mesmo mortos nos abandonam

Somos garrafas lançadas ao mar
Somos a mensagem em carne e osso
Somos fantasmas vagando na terra
Náufragos da civilização
Perdidos num túnel sem saída
Suplicando na porta da fortaleza

Enquanto levamos uma vida proibida
Turistas cruzam o Gibraltar

Os corações estão salgados
e nossa humanidade
está à deriva
em algum bote inflável
em alto mar


Ruivo Lopes


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